Sou fã de Gonçalo Júnior, um cara sério, jornalista competente que entende tudo de Histórias em Quadrinhos e do seu universo, autor consagrado de diversos livros com tal temática. Li este texto escrito por ele e achei por bem reproduzir aqui neste bloguito, devidamente não autorizado, para que leitores conscientes das HQs, desenhistas e demais profissionais da área e todos os interessados no tema possam ler.
O tabu das panelinhas, um mal dos Quadrinhos.
Por Gonçalo Junior
Você faz parte de alguma panelinha dos Quadrinhos? Ou melhor, acredita que existam panelinhas no meio de quem faz, publica ou estuda Quadrinhos no Brasil? Quando pensei em escrever sobre esse tema, imaginei a primeira reação da parte de quem pararia para ler estas linhas: isso não existe, é exagero, não é bem assim, etc. Na verdade, há panelinhas do bem e do mal, digamos assim. Quase sempre, são grupos de amigos que lutam por objetivos comuns.
Como em qualquer atividade profissional humana, porém, existem as panelinhas nefastas, aquelas que atropelam valores éticos e morais em nome do se dar bem a qualquer custo para seus acampados membros. Ou pelo simples prazer de destruir o próximo. Quem é jornalista sabe bem que muitas vezes o comando das redações é revezado por participantes de poderosas panelas que tomam conta de jornais e revistas. É a turma que está sempre por cima porque um ajuda o outro, acolhe o outro. Se não há vagas, demita-se alguém. Talento? Isso é um mero detalhe, cara-pálida. Em 15 anos de profissão, posso falar com tranqüilidade sobre onde as boas relações levam certos jornalistas. Mas interessa aqui o segmento de gibis. Nesse mercado, talvez o assunto venha embrulhado em desfaçatez, de boicote, de intrigas e fofocas. Canso de ouvir comentários destrutivos sobre alguém que não se deu bem em algum projeto. É como uma vitória pessoal do “Eu não disse? Eu não avisei?”.
A panelinha é uma instituição no mundo dos Quadrinhos Brasileiros e não nasceu ontem. Faz tempo. Num evento que fui recentemente, ouvi uma piada de um amigo que procurava justificar o deserto que havia na platéia: “Era possível juntar numa ante-sala de uma cafeteria de São Paulo os artistas que faziam Quadrinhos no país. Mas não se recomendava fazer o mesmo com os editores, pois eles se matariam e dificilmente um sairia de lá vivo”. Injustiça com os editores, claro. Entre artistas, comerciantes e colecionadores, não é diferente esse tipo de hostilidade que, muitas vezes, tem a ver com panelinhas. Quadrinhos no Brasil são como torcida de futebol. Se um caiu para a segunda divisão, os outros querem vê-lo na terceira. Ou mesmo extinto. Se bem que, entre amigos, os torcedores apenas tiram um saudável sarro. Com os Quadrinhos é diferente. Como diria Raul Seixas, é muita estrela para pouca constelação em alguns casos. É muito ego para pouco espaço. Não me refiro apenas a determinados editores. Falo do "pessoal" de Quadrinhos de modo geral. Quero dizer: como aves de rapina, alguns ficam sobre a cerca de arame na torcida para que o outro literalmente se dane.
Os boicotes são o que há de mais sintomático nisso. É preciso boicotar o evento do outro para que ele aprenda a lição e não faça mais isso. Não me esqueço do dia em que circulou a informação de que uma editora de um amigo havia acabado. Foi uma festa geral, como se todos os outros estivessem acima do bem e do mal. É lamentável notar que momentos ideais para encontros de confraternização e troca de contatos, de aproximação, fiquem sempre vazios. Costumo dividir a "humanidade" e, conseqüentemente, a turma dos Quadrinhos, em três categorias: os que fazem, os que não fazem e os que só fazem falar. O grupo intermediário é a galera do bem, os leitores, os consumidores de gibis, os fãs. Enfim, a ala que realmente me interessa e em quem sempre penso quando escrevo um livro. O terceiro reúne os chamados espíritos de porco, fofoqueiros, intrigueiros, paranóicos, psicóticos. São criaturas que agem pela internet, criam personagens fictícios para ofender, destratar, difamar. Muitas vezes, alguns me colocam em saia justa. Não é fácil trafegar em todos esses meios, uma vez que exige certo tato, certo zelo para não ferir vaidades.
Um problema causado pelas panelinhas é que seus participantes perdem o senso crítico. Em sua visão do mundo, não interessa o que é melhor, mas se foi feito por alguém que tem afinidade com o seu grupo. Ninguém me tira isso da cabeça. Só assim consigo compreender porque eleições como as do HQ Mix causem tanta polêmica, uma vez que confio na idoneidade de Jal e Gualberto, seus organizadores, quanto ao processo de seleção. A rede de amigos tem uma força decisiva nos resultados desse e de outros prêmios. O que não quer dizer que se trata sempre de panelinhas. Mas, dentre os votantes, um número razoável faz parte delas e fecham os olhos para quem está competindo. Não interessa o que os outros fazem. E ponto final. É óbvio, portanto, que o sistema de votação se torna frágil porque fica vulnerável à força de interesses mesquinhos, das torcidas uniformizadas da Panela Futebol Clube. Não se indica ou não se vota numa obra de um editor ou autor "inimigo". Não importa o seu valor, repito.
Não é fácil entrar numa panelinha. Você precisa provar lealdade, que é alguém realmente confiável, sincero, que traga a cabeça de um rival numa bandeja. Quer um exemplo pessoal? Lancei quatro livros num determinado lugar e não me lembro de ter tido o prazer de contar com a presença de um único editor "concorrente" – que foram amigavelmente convidados. A não ser Eloyr Pacheco e Wagner Augusto. Sem querer ofender, isso parece coisa de gangue de rua. Ninguém pinta no pedaço do outro. Patético. Aonde quero chegar? Nos malefícios que todo esse joguinho rasteiro do boicote traz para o mercado de Quadrinhos. Conheço pessoas que dizem de boca cheia: não compro os livros de tal editora. E daí, meu irmão? Não sabe o que está perdendo. O buraco é mais embaixo. Ao invés de arregimentar leitores detonando o concorrente ou a editora que compete com a panelinha que faz parte, acredito que o caminho seja discutir saídas a médio e longo-prazos, pois vejo uma bolha se formar no horizonte.
Essa mesquinharia vai matar o mercado. Não acredito que o número de compradores regulares de gibis tenha aumentado. Pelo contrário. Vejo um sacrifício imposto a um universo reduzido de consumidores, com alto poder aquisitivo, por editores que não competem de forma saudável. Por outro lado, falta a preocupação de que daqui a dez ou quinze anos esse público se renove. A molecada adolescente que lê gibis está sendo desprezada. E tenho dito: adulto não descobre os Quadrinhos, o gosto vem da infância e da adolescência. Ou discutimos esses temas e procuramos revitalizar o mercado, a começar pelo o fim dos boicotes – e mostramos força no setor – ou nos entrincheiramos dentro de uma panelinha, a olhar pela borda e a torcer para que o mundo lá fora se dane."
(Public. origin. 20/09/14)
O tabu das panelinhas, um mal dos Quadrinhos.
Por Gonçalo Junior
Você faz parte de alguma panelinha dos Quadrinhos? Ou melhor, acredita que existam panelinhas no meio de quem faz, publica ou estuda Quadrinhos no Brasil? Quando pensei em escrever sobre esse tema, imaginei a primeira reação da parte de quem pararia para ler estas linhas: isso não existe, é exagero, não é bem assim, etc. Na verdade, há panelinhas do bem e do mal, digamos assim. Quase sempre, são grupos de amigos que lutam por objetivos comuns.
Como em qualquer atividade profissional humana, porém, existem as panelinhas nefastas, aquelas que atropelam valores éticos e morais em nome do se dar bem a qualquer custo para seus acampados membros. Ou pelo simples prazer de destruir o próximo. Quem é jornalista sabe bem que muitas vezes o comando das redações é revezado por participantes de poderosas panelas que tomam conta de jornais e revistas. É a turma que está sempre por cima porque um ajuda o outro, acolhe o outro. Se não há vagas, demita-se alguém. Talento? Isso é um mero detalhe, cara-pálida. Em 15 anos de profissão, posso falar com tranqüilidade sobre onde as boas relações levam certos jornalistas. Mas interessa aqui o segmento de gibis. Nesse mercado, talvez o assunto venha embrulhado em desfaçatez, de boicote, de intrigas e fofocas. Canso de ouvir comentários destrutivos sobre alguém que não se deu bem em algum projeto. É como uma vitória pessoal do “Eu não disse? Eu não avisei?”.
A panelinha é uma instituição no mundo dos Quadrinhos Brasileiros e não nasceu ontem. Faz tempo. Num evento que fui recentemente, ouvi uma piada de um amigo que procurava justificar o deserto que havia na platéia: “Era possível juntar numa ante-sala de uma cafeteria de São Paulo os artistas que faziam Quadrinhos no país. Mas não se recomendava fazer o mesmo com os editores, pois eles se matariam e dificilmente um sairia de lá vivo”. Injustiça com os editores, claro. Entre artistas, comerciantes e colecionadores, não é diferente esse tipo de hostilidade que, muitas vezes, tem a ver com panelinhas. Quadrinhos no Brasil são como torcida de futebol. Se um caiu para a segunda divisão, os outros querem vê-lo na terceira. Ou mesmo extinto. Se bem que, entre amigos, os torcedores apenas tiram um saudável sarro. Com os Quadrinhos é diferente. Como diria Raul Seixas, é muita estrela para pouca constelação em alguns casos. É muito ego para pouco espaço. Não me refiro apenas a determinados editores. Falo do "pessoal" de Quadrinhos de modo geral. Quero dizer: como aves de rapina, alguns ficam sobre a cerca de arame na torcida para que o outro literalmente se dane.
Os boicotes são o que há de mais sintomático nisso. É preciso boicotar o evento do outro para que ele aprenda a lição e não faça mais isso. Não me esqueço do dia em que circulou a informação de que uma editora de um amigo havia acabado. Foi uma festa geral, como se todos os outros estivessem acima do bem e do mal. É lamentável notar que momentos ideais para encontros de confraternização e troca de contatos, de aproximação, fiquem sempre vazios. Costumo dividir a "humanidade" e, conseqüentemente, a turma dos Quadrinhos, em três categorias: os que fazem, os que não fazem e os que só fazem falar. O grupo intermediário é a galera do bem, os leitores, os consumidores de gibis, os fãs. Enfim, a ala que realmente me interessa e em quem sempre penso quando escrevo um livro. O terceiro reúne os chamados espíritos de porco, fofoqueiros, intrigueiros, paranóicos, psicóticos. São criaturas que agem pela internet, criam personagens fictícios para ofender, destratar, difamar. Muitas vezes, alguns me colocam em saia justa. Não é fácil trafegar em todos esses meios, uma vez que exige certo tato, certo zelo para não ferir vaidades.
Um problema causado pelas panelinhas é que seus participantes perdem o senso crítico. Em sua visão do mundo, não interessa o que é melhor, mas se foi feito por alguém que tem afinidade com o seu grupo. Ninguém me tira isso da cabeça. Só assim consigo compreender porque eleições como as do HQ Mix causem tanta polêmica, uma vez que confio na idoneidade de Jal e Gualberto, seus organizadores, quanto ao processo de seleção. A rede de amigos tem uma força decisiva nos resultados desse e de outros prêmios. O que não quer dizer que se trata sempre de panelinhas. Mas, dentre os votantes, um número razoável faz parte delas e fecham os olhos para quem está competindo. Não interessa o que os outros fazem. E ponto final. É óbvio, portanto, que o sistema de votação se torna frágil porque fica vulnerável à força de interesses mesquinhos, das torcidas uniformizadas da Panela Futebol Clube. Não se indica ou não se vota numa obra de um editor ou autor "inimigo". Não importa o seu valor, repito.
Não é fácil entrar numa panelinha. Você precisa provar lealdade, que é alguém realmente confiável, sincero, que traga a cabeça de um rival numa bandeja. Quer um exemplo pessoal? Lancei quatro livros num determinado lugar e não me lembro de ter tido o prazer de contar com a presença de um único editor "concorrente" – que foram amigavelmente convidados. A não ser Eloyr Pacheco e Wagner Augusto. Sem querer ofender, isso parece coisa de gangue de rua. Ninguém pinta no pedaço do outro. Patético. Aonde quero chegar? Nos malefícios que todo esse joguinho rasteiro do boicote traz para o mercado de Quadrinhos. Conheço pessoas que dizem de boca cheia: não compro os livros de tal editora. E daí, meu irmão? Não sabe o que está perdendo. O buraco é mais embaixo. Ao invés de arregimentar leitores detonando o concorrente ou a editora que compete com a panelinha que faz parte, acredito que o caminho seja discutir saídas a médio e longo-prazos, pois vejo uma bolha se formar no horizonte.
Essa mesquinharia vai matar o mercado. Não acredito que o número de compradores regulares de gibis tenha aumentado. Pelo contrário. Vejo um sacrifício imposto a um universo reduzido de consumidores, com alto poder aquisitivo, por editores que não competem de forma saudável. Por outro lado, falta a preocupação de que daqui a dez ou quinze anos esse público se renove. A molecada adolescente que lê gibis está sendo desprezada. E tenho dito: adulto não descobre os Quadrinhos, o gosto vem da infância e da adolescência. Ou discutimos esses temas e procuramos revitalizar o mercado, a começar pelo o fim dos boicotes – e mostramos força no setor – ou nos entrincheiramos dentro de uma panelinha, a olhar pela borda e a torcer para que o mundo lá fora se dane."
(Public. origin. 20/09/14)