09 abril 2022

A dita Guerra de Canudos em versos do escritor Édio Souza, com desenhos de Setúbal


Eu já havia ilustrado crônicas que o escritor Édio Souza enviava de Santo Amaro da Purificação para o jornal A Tarde. Um dia, por telefone, ele me convidou para ilustrar um livro seu, escrito com versos à maneira da instigante, bela e tão brasileira linguagem dos livros de cordéis. Topei. Com uma ajuda do Núcleo de Incentivo Cultural de Santo Amaro fizemos um opúsculo que é, sim, pequeno em tamanho, mas que no final resultou em um belo livro que considero merecedor de uma nova edição feita por alguém que enxergue na obra o real valor que tem. Uma edição nova, bem feita, em um tamanho maior, em bom papel, impressão e revisão à altura da obra, pois a narração em inspirados versos escritos por Édio Souza faz por merecer ser lida por um público mais amplo, sendo esta narrativa de Édio uma preciosidade, lançando um olhar próprio e novo de um homem inteirado sobre uma temática já tão amplamente debatida mas que jamais se esgota, um olhar que é amplo, aguçado e embasado sobre esta dita guerra, que guerra nunca foi pois só havia um único exército na refrega, uma dolorosa ferida que carregamos na alma através de sucessivas décadas e que parece não querer cicatrizar, uma mais que delicada e inquietante página da História do nosso país de tantas e tantas páginas inquietantes que se repetem contra a vontade dos que querem uma pátria mais humana, mais justa. 
**********Acima, a capa, logo abaixo, três das ilustrações que fiz para o livro. Para fazê-las, utilizei grafite 2B sobre papel westerprint 180gramas, canetas nanquim, pincel Kolinsky 02, nanquim e uma cor laranja-céu-da-caatinga indicada graficamente. Clique em cima das figuras para ampliá-las.

04 abril 2022

Mulher de Áries no Horóscopo de Vinicius de Moraes

Branca, preta ou amarela
A ariana zela.
Tem caráter dominador
Mas pode ser convencida
E aí, então, fica uma flor:
Cordata...e nada convencida.
Porque o seu denominador
É o amor.
Eu cá por mim não tenho nenhum
preconceito racial
Mas sou ariano!
(201013)

03 abril 2022

Fernando Pessoa, poeta e fingidor, as criadas e os moços de fretes. .

Durante longo tempo trabalhei diariamente em redações com a incumbência de ilustrar matérias, artigos, crônicas e coisas quejandas, entre as quais se incluem a feitura de caricaturas e retratos de insignes gentes, como o grande poeta da língua portuguesa, Fernando Pessoa. Para aproveitar o momento, eu sempre buscava experimentar toda sorte de materiais que me possibilitassem fazer uma boa ilustração e ao mesmo tempo, me permitissem conhecer mais do uso desses referidos materiais. Um deles, o lápis 6B, foi o que usei para fazer em papel westerprint 180 gramas este retrato do grande, do formidável poeta fingidor que fingia tão completamente que chegava a fingir que era dor a dor que deveras sentia, que sofria enxovalhos e se mantinha calado, no mais estóico dos estoicismos, fingindo não perceber a troça das criadas de hotel nem o piscar de olhos dos moços de fretes. Gajo porreiro, gajo fixe, o Pessoa. Cabra bão!
(180518)

Gutemberg Cruz, o indecifrável Coringuto

A lindíssima mostra com trabalhos do cartunista Lage que rolou não faz muito tempo na Caixa Econômica da Rua Carlos Gomes nesta afrobaiana Soterópolis, significativa e comovente, foi produzida por Alice Lacerda e Nildão, constituindo-se uma homenagem tocante e mais que justa para um cara de um talento raro que nunca encontrou similar no mundo dos cartuns. Encheu nossos olhos de prazer, nos envolvendo o coração com uma emoção finíssima, conduzindo-nos a uma alegria reconfortante. Estive por lá como fã, como amigo, como colega de traço e até ministrei uma oficina de caricaturas. Tudo que envolveu Lage em vida teve sempre um elevado astral. E nada parece haver  mudado, pois muita coisa boa me aconteceu nas várias vezes que por lá apareci. Uma foi rever meu brodinho Gutemberg Cruz, jornalista e crítico de quadrinhos, gente finíssima,  fundamental incentivador dos cartunistas baianos. Fiquei assaz impressionado com o Guto que de tanto gostar, pesquisar, consumir, ver, ler, de muito entender e devorar quadrinhos pareceu-me a cada dia ficar mais parecido com os personagens das páginas agaquesísticas. Guto tem horas que fica a cara feita a nanquim do Coringa, The Joker, com direito a risos indecifráveis, esgares arrepiantes, gestual de saltimbanco, proferindo falas carregadas de dubiedades e mistérios insondáveis. Está dando pinta de que qualquer dia desses cada vez que ele falar suas palavras virão acondicionadas em um balão de HQ com direito a lotes de onomatopeias do conhecido vilão galhofeiro. Santo irmão gêmeo, Batman! Esta missão começa a ficar perigosa, Seu Nildão!
(Hoje, dia 3 de abril, reposto esta postagem-exaltação em homenagem ao grande aniversariante do dia, meu confrade Gutemberg Cruz, um ariano-raiz: honesto, criativo, corajoso, batalhador.)      

02 abril 2022

O dia em que o cartunista Valtério Sales saiu do armário e botou pra quebrar.

 Como é de habitude, os dias de estio da Bahia soem ser iluminados, plenos de risos, festas, confraternizações amistosas sob o sol à beira da praia, papos profundos regados à cerveja e roskas de frutas as mais diversas. Antes, bem antes que as águas de malço deem as caras fechando o verão, há uma enorme promessa de vida no meu coração e nos corações das gentes que por aqui habitam. Ou que por aqui aportam, como é o caso deste retumbante e maravilhoso trio de ilustres paraenses, estimados amigos meus que decidiram passar uns dias sob o convidativo sol desta afrocity chamada Soterópolis, que vem a ser a afrocapital da Bahia, e que em dias recentes nos visitaram nestas plagas. Refiro-me a Biratan Porto e J. Bosco, consagrados cartunistas e caricaturistas brilhantes, e a Luiz Fernando Carvalho, estudioso apaixonado do universo cartunístico, sendo ainda uma batelada de coisas mais. Pois estes intimoratos conterrâneos da Fafá de Belém, da Gaby Amaranto e do Pinduca planejaram com antecedência sua viagem e estadia, hospedando-se em um confortável flat em Itapuã. Também de forma antecipada ligaram cientificando a mim e ao cartunista e escultor Valtério Sales, por sermos seus amigos de longa data. No dia e hora da chegada, Valtério – estreando uma nova bengala toda feita em madeira de lei - foi buscá-los, transportando-os para o flat. Não demorou muito e cheguei eu. Reencontrar amigos do peito como Bira, Bosco e Luiz Fernando é sempre uma renovada alegria, sentimento em muito ampliado quando Bira anunciou que nos traziam uma mala cheia de regalos, dentre eles, para o Valtério, uma caixa da famosa bebida paraense que chamam de cachaça de jambu, uma cachaça que cachaça não é, segundo os dicionários, reservando eles esta denominação às bebidas feitas com cana de açúcar. Ocorre que, cachaça ou não cachaça, esta bebida é famosa por ter características exclusivas dela, tais como um barato que dá, seguido de uma dormência nos lábios, língua e céu da boca. Valtério, que já a experimentara em outras oportunidades, arregalou os olhos e chegou a flutuar, tal era sua felicidade. 
Muito embora este meu papo trate sobre gentes e acontecimentos da Bahia e do Pará, vou encaixar aqui um tremendo gauchão, o analista de Bagé, personagem criado por outro Luís Fernando, o escritor filho de Érico Veríssimo. Entre um joelhaço e outro em seus pacientes, o analista afirma, sem admitir réplica, que não existe gaúcho homossexual, o que existe nos pampas são correntes migratórias. Falo isso porque na Bahia não existem larápios, gatunos, ladravazes e rapaces. Mas volta e meia surgem por aqui umas correntes migratórias de maus elementos, oriundos de sei lá quais rincões, para nos turvar os dias mais solares. Pois uma dupla destas entendeu de dar plantão justamente no flat em que estávamos, assaltando eles todos os apartamentos e seus ocupantes. Precisamente ali, onde nos encontrávamos papeando na maior descontração, bebendo umas geladíssimas. J.Bosco, sedento, fora na cozinha pegar mais umas cervejotas na geladeira e viu os dois amigos do alheio armados com duas automáticas. Por sorte os meliantes não o viram, e ele conseguiu nos dar o alarme. Além de cartunistas, somos todos machos que honram as calças e as samba-canções que vestimos e fizemos o que era imperativo fazer, já que este negócio de valentia tem hora e o bom senso nos alerta que em momentos de desvantagem como o que se anunciou, o ato mais corajoso, racional e sensato a ser feito é tratar de se esconder o melhor e o mais rápido possível. Assim, Luiz Fernando, que tem físico de lutador de sumô, pulou, qual um acróbata, dentro de um grande baú que servia de decoração. Eu, Bosco e Bira, nos enfiamos céleres debaixo da cama e Valtério, na falta de um esconderijo melhor, entocou-se no armário. Não demorou e a dupla entrou no quarto e começou a mexer na bagagem dos nossos amigos. E nós - ai de nós! - todos silentes e sem mexer um músculo, nem respirar. Os sujeitos exultavam, colocando em um saco tudo de valor que encontravam, celulares, relógios, laptops, chave do carro, CDs do Pablo dos quais JBosco jamais se separa. De repente, um dos larápios comemorou em voz alta um achado precioso: “Mermão, olha só este tesouro: cachaça de jambu, vinda de Belém do Pará, meu rei!!” 
Dentro do armário, um anjo soprou no ouvido de Valtério uma verdade drástica: se ele não tomasse uma atitude iria ficar sem sua caixa de preciosíssimas cachaças de jambu, que iriam adormecer os beiços do maléfico duo de aves de rapina. Incontinenti, sem pensar nas consequências de seus atos, sem ligar para as armas mortais dos marginais, qual um tigre Valtério saiu do armário de um só salto e brandindo sua bengala de madeira de lei deu certeiras e potentíssimas porretadas nas cucas das ladravazes criaturas, que caíram no chão, estatelados, sem sequer saberem o que os acertou, sem terem noção da chapa da jamanta que passou por cima deles. Com os bandidos totalmente fora de combate, minha coragem aumentou em muito, bem como a do resto da trupe e deixamos nossos esconderijos sem maiores constrangimentos. Na sequência, chegou a justa numa muito escura viatura. Assombrados com o estado em que ficaram os bandidos, os homi os levaram, ainda nocauteados, para a DP. A nenhum de nós Valtério soube explicar direito o que aconteceu. Porém dúvidas não restam: ele agiu movido por um impulso incontrolável ao perceber que ficaria sem seu néctar dos deuses, o jambu engarrafado que tão gentis amigos trouxeram do Pará. Os dias vão passando, passando, e nada da gente esquecer da cena daquele inacreditável massacre que sofreram os indigitados marginais. Na minha memória, na de Bira, Bosco e Luiz Fernando, testemunhas daqueles momentos, o acontecido ficou perenemente registrado, gravado de forma indelével como o dia em que, mostrando uma faceta que até então desconhecíamos em tão cordato amigo, Valtério Sales saiu do armário e entrou para a História.
(120219)