19 junho 2019

Caetano Veloso, Maria Betânia, Gilberto Gil, Gal Costa e a verdadeira origem dos Doces Bárbaros

Corria o ano de 1976 e Santo Amaro da Purificação vivia dias de um regozijo sem precedentes em sua história. Tudo porque Dona Canô, líder natural da comunidade e quitueira de invulgares dotes e assaz justificado prestígio, decidira que seus mui deliciosos acepipes, dantes restritos às privilegiadas papilas gustativas de seus familiares e uns poucos agregados, iriam ser postos à venda para todo o povo santoamarense. Tudo movido pelo nobre objetivo de angariar fundos para viabilizar a festa anual ao santo padroeiro da simpática urbe. Sendo a venerável matriarca dos Vellosos, Dona Canô contou com a consuetudinária participação de todos da família. Mesmo os mais novos como o ainda glabro Caêzinho e sua mana Beta, Beta, Bethâninha, ambos de prendas canoras aclamadas nas tertúlias do clã. A dupla chamou seus amiguinhos Gilzinho e Galzinha que incontinentemente aceitaram o convite. Unindo talento artístico com tino comercial o quarteto criou - e apresentava na praça - um show de canto e dança de fazer Michael Jackson babar de inveja. Tudo para ajudar na vendagem feita por nobres motivos. E com tal fim bolaram um jingle em que preconizavam ainda mais as virtudes e a já reconhecida suprema qualidade dos doces canônianos, os quais batizaram de Doces Bárbaros, usando um neologismo da época. Sucesso total! Multidões acorriam à praça e as vendas aconteciam aos borbotões. Com a renda arrecadada a igreja fez a mais linda festa ao santo padroeiro que como reconhecimento retribuiu aos habitantes com mais que farta distribuição de graças. Uma delas foi fazer com que entre o público admirador dos meninos estivesse, de passagem por Santo Amaro, um influente empresário do ramo musical que viu logo que em futuro mui breve eles se tornariam grandes estrelas da MPB. E não pestanejou: contratou, célere, toda a trupe que levou para Sampa. Lá montou o show Doces Bárbaros, aquele mesmíssimo criado pelos precoces infantes para vender as canônianas delícias em modesta ágora santamarense. O sucesso foi estrondoso como previsto e hoje os Doces Bárbaros são conhecidos e reverenciados em todo o planeta graças, sobretudo, às habilidades culinárias e ao axé de Dona Canô, a mui amada e inspiradora matriarca.
(10/08/13)

15 junho 2019

Reinhard Lackinger, escritor, taverneiro do Bistrô PortoSol: meio século de baianidade austro-nagô.

Algumas efemérides em nossas existências são de extrema grandeza e imensurável importância para nós outros. Esquecer qualquer uma delas é incorrer em imperdoáveis heresias. A cada ano nos empenhamos em comemorar com crescente alegria certas datas que temos na conta de muito, muito especiais. Você tem as suas, eu tenho as minhas, fulanos, beltranos e sicranos têm as deles. Por exemplo, por exemplo, neste mês de maio de 2019 meu estimado e mais que idolatrado amigo Reinhard Lackinger, um baiano da gema oriundo das terras de Romy Shchneider - ou dizendo melhor, de Sissi, a Imperatriz - está completando 50 anos de vivência cotidiana neste país varonil chamado Brasil-sil-sil. Não, você não leu errado, atilado leitor, não é preciso correr para um oftalmologista. Meio século faz que este cara sorridente, muito boa-praça, aportou por aqui apaixonando-se à primeira vista por esta balbúrdia e por sua cônjuge - eu disse cônjuge - a amável Maria Alice, e aqui se quedou para a felicidade geral de seus amigos brasileiros, notadamente os desta Soterópolis, capital da Bahia. Entre tais amigos, confidencio que me incluo com o mais lídimo orgulho. Para quem não o sabe, é de Reinhard o cantinho mais aconchegante de nossa afrourbe, o Bistrô PortoSol, local onde é possível saborearmos as mais capitosas delícias da cozinha austro-húngara, e de quebra desfrutarmos do melhor chopp do mundo. Ao amigo leitor alerto desde já que, ainda que isto possa soar aos seus céticos pavilhões auditivos como uma publicidade radiofônica, trata-se da mais verdadeira das verdades.
 Saiba você, autarquia, que quando faço o inventário da minha fortuna pessoal constato que pouquíssimo, um quase nada, possuo de bens materiais. Em contrapartida tenho como inestimável tesouro a amizade de alguns dos seres mais maravilhosos que já pisaram no solo deste orbe índigo blue.Tá rebocado e piripicado, que Reinhard, hábil taverneiro e inspirado escritor, está neste seleto rol de amigos, sendo ele um cara de grande inteligência, vasta cultura, de aguçada visão social e política, um humanista da melhor estirpe, um progressista que não aceita retrocessos de nenhuma ordem ou espécie, um cara generoso, desprendido, solidário. A lista de elogios é bem mais extensa e eu, por receio de ser acometido por uma LER, abdico de ficar teclando outros adjetivos qualificativos e encerro por aqui dizendo que Reinhard, taverneiro hábil e inspirado escritor, é um dos melhores papos desta Bahia de tantos papos bons, coisa que podemos constatar em qualquer momento, em qualquer cenário agradável, notadamente entre um gole e outro de um chopp mui bem tirado, em uma das mesas que ficam sob o aconchego do seu, do nosso Bistrô PortoSol, no Porto da Barra. Para dizer ao estimado amigo Reinhard o quanto o considero um cara porreta, fiz esta caricatura dele com guache branco sob papel preto, uma espécie de xilogravura apócrifa, técnica que ele já disse muito apreciar. Aí eis que me empolguei e resolvi fazer uma versão colorida do mesmo desenho para incluir nesta mesma postagem em que faço esta louvação, louvação, louvação de quem deve ser louvado. Parabéns por este meio século já cumprido e que venha mais um século inteiro de convivência. Um abraço deste seu amigo de longa data, um sujeito que o tem em altíssima conta, nobilárquico Reinhard. É isto aí, meu Rei!
(18/05/19)

14 junho 2019

Nildão, cartunista e designer gráfico talentoso e inovador

Revisitar temas amplamente explorados por profusões de profissionais exige do artista que ele lance um olhar novo sobre o assunto abordado. Nildão tem de sobra essa virtude, quer quando faz cartuns, quer quando transita pelo designer gráfico criando cartazes, capas de discos, logomarcas e um mundo de coisas. Nildão é o cara! Seu notável o potencial criativo vai muito além da inquestionável sensação de ineditismo mesmo quando trata de conhecidas temáticas. Seu leque de qualidades é amplo e resulta em um trabalho de rara excelência que vem angariando uma cada vez maior legião de admiradores incondicionais. Essa criatividade de Nildão o leva a transitar com propriedade por imagens e palavras e o resultado produzido deve ser saboreado pelos leitores com o prazer com que se saboreia um vinho de qualidade ou a mais deliciosa das iguarias. Um humor da mais alta qualidade é presença constante em seus trabalhos, sendo por vezes sutil, exigindo um olhar mais atento ao que está sendo mostrado, ou sendo cortante como o fio da mais afiada das navalhas quando lança seu olhar atento sobre as questões políticas e sociais. Por vezes seus desenhos e criações gráficas chegam a parecer  despretensiosas brincadeiras com jeito bem moleque feitas para contemplar os leitores com as mais gostosas gargalhadas. Eclético, sempre diversificado, por vezes gosta de fazer deliciosos jogos de palavras, usa trocadilhos nada infames, e é mestre em lançar ao público questionamentos e provocações da forma mais criativa que se possa imaginar. Sem cair na perigosa armadilha do acomodamento e dos maneirismos em que tantos artistas naufragam, Nildão é um criador de múltiplos talentos sempre em sucessivo processo de renovação, reinventando-se constantemente dentro do seu labor artístico. Profícuo, desde o início dos oitentas Nildão vem lançando a cada ano um novo livro com suas criações e é maravilhoso poder comprovar seu expressivo salto de qualidade no terreno do grafismo, o domínio que ele adquiriu no trato das cores e da linguagem gráfica como um todo. As soluções gráficas que apresenta comprovam seu amplo conhecimento dessa linguagem, muitas vezes se percebe que por trás de uma aparente simplicidade existe uma sofisticação própria de quem domina o assunto, há um refinamento ainda maior do seu humor e das suas ideias.  A magnífica evolução de seu trabalho como designer gráfico e o atual estágio de alta qualidade que esse alcançou indubitavelmente coloca Nildão no patamar dos melhores artistas gráficos da atualidade no Brasil. Se você ainda não leu os livros dele nem visitou o site, aqui vai um link para você se deliciar com o site do artista: http://www.nildao.com.br
(Publicado originalmente em 22/09/15)

Fernando Ikoma: quadrinista, argumentista, artista plástico dos muito bons.









No universo por vezes sombrio das HQs brasileiras, Fernando Ikoma foi sempre estrela das mais perfulgentes. Desde o início de sua rica trajetória Ikoma revelou possuir um talento raro e uma criatividade que o permitia transitar por temáticas mais que revisitadas por miríades de artistas sem cair nas insidiosas armadilhas dos estereótipos, das mesmices, das soluções fáceis. Seus personagens bem construídos viviam situações que suscitavam a curiosidade dos leitores. Personagens sempre envolvidos em tramas que tinham o dom de prender a atenção dos incontáveis fãs, entre os quais estava eu, admirador de primeira hora de suas criações, Fikom, Sibelle, a espiã de Vênus, A turma da Cova, Zé Experimentadinha, Paquera, Maria Esperançosa. Ufa! Haja criatividade para um único cérebro. Mas aqui neste Brasil de Gugu e Clodovil nem sempre ter talento é garantia de sucesso. Tanto mais num mercado inóspito como o dos quadrinhos. E o criador de Fikom e Cia, mesmo tendo tanto a mostrar e a produzir viu-se obrigado a mudar o rumo de sua vida profissional. Com sua verve criativa Fernando Ikoma poderia ser escritor, roteirista de TV ou Cinema, homem de Marketing e o escambau. Preferiu trilhar o belo caminho das Belas Artes e hoje usa seu talento para criar bem elaboradas pinturas em telas que o tornaram um artista plástico consagrado recebendo o merecido reconhecimento e o respeito de todos. Grande, grande Fernando Ikoma!
 Para ver trabalhos deste Mestre, vai aqui o link: http://blogdoikoma.blogspot.com/
(10/04/14)

José Cândido de Carvalho, escritor: visão ecológica lúcida bem antes do G8

Além de nos mimosear a todos com obras literárias de grande inspiração, José Cândido de Carvalho, cidadão atento, mente lúcida, de quebra nos alertava em 1970 para os crimes perpetrados contra a natureza em nome do progresso. Falar em defesa da ecologia e do ecossistema hoje é uma praxe de muitos neste planeta com tantos crimes ecológicos e superaquecimento, ainda que os culpados pelos graves problemas contra o planeta se sintam livres para continuar em suas práticas nefárias. José Cândido, inteligente, antenado, consciente, premonitório, antevendo que tudo redundaria nos graves problemas do mundo de hoje, já alertava contra o que estava por vir e assim escreveu e publicou isto 40 anos atrás :
" E agora, não tendo mais o que inventar, inventaram a tal da poluição, que é doença própria de máquinas e parafusos. Que mata os verdes da terra e e o azul do céu. Esse tempo não foi feito para mim. Um dia não vai haver mais azul, não vai haver mais pássaros e rosas. Vão trocar o sabiá pelo computador. Estou certo que esse monstro, feito de mil astúcias e mil ferrinhos, não leva em consideração o canto do galo nem o brotar das madrugadas. Um mundo assim, primo, não está mais por conta de Deus. Já está agindo por contra própria. "
(25/09/2014)

07 junho 2019

Fernando Trueba, Bebo Valdés, Carlinhos Brown e o Milagre do Candeal.

Carlinhos Brown, Bebo Valdés e Fernando Trueba, em 2004.
Belle Époque (Sedução, aqui no Brasil) foi o primeiro filme dirigido por Fernando Trueba que assisti. Gostei muito e não era para menos. O argumento é envolvente, a fotografia bela, a direção primorosa. O elenco, maravilhoso, pra dizer o mínimo, traz Ariadna Gil, Penélope Cruz, Jorge Sanz, Maribel Verdú, Fernando Fernán Gómez, Chus Lampreave. Por essas virtudes, em 1993 o filme recebeu prêmios importantes no mundo do cinema, como o Goya de melhor diretor e melhor argumento e o Oscar de melhor filme de língua não Inglesa e outros mais. Por haver gostado desse diretor, volta e meia assisto algo que ele dirige ou produz. Vi e muito curti  um deslumbrante desenho animado que Trueba dirigiu em 2010, em parceria com Javier Mariscal, uma animação chamada Chico y Rita, com trama ambientada numa Cuba pré-Fidel, com bela trilha sonora de Bebo Valdéz. Assim, quis logo assistir O milagre do Candeal (El milagro de Candeal), documentário de Trueba, rodado em 2004. Numa narrativa gostosa e cheia de nuanças, o documentário mostra, entre outras coisas, o trabalho social desenvolvido por Carlinhos Brown no hoje famoso bairro de Salvador, Bahia. Enriquece o documentário a participação do legendário pianista cubano Bebo Valdés, que visita o Candeal, bem como a do cantor e músico Mateus Aleluia, aquele de Os Tincoãs. Ao lado de Brown, Mateus faz as vezes de anfitrião para Bebo Valdés. Os diálogos são em Espanhol e Português neste belo documentário em que o tema centralizador é o projeto social do Candeal, a música, as influências e intercâmbios musicais, as religiões de matriz afro, a ancestralidade comum, e também a enorme influência africana presente no cotidiano da Bahia e em Cuba. Cenas de moradores do Candeal e de voluntários trabalhando em álacre mutirão para erguer praça e construção são entremeadas de depoimentos desses populares, parte importante do projeto, erguendo com as próprias mãos a parte física e material do Milagre. Enriquece o documentário a presença de Marisa Monte, cantando ao lado de Brown. Mateus Aleluia também canta e toca, da mesma forma que Gilberto Gil e Caetano Veloso. Esses dois últimos, aparecem em entrevistas descontraídas. Caetano mostra um Espanhol escorreito, ao conversar com Bebo Valdés. Isso faz lembrar que, no documentário, quando as pessoas falam em Português, aparecem legendas em Espanhol para que os falantes dessa língua possam melhor entender os diálogos. Tais legendas são dispensadas nas falas de Gil e Caetano, pelo Espanhol fluente com que ambos falam. O burlesco, ainda que involuntário, fica por conta de Carlinhos Brown que, para se comunicar com Bebo, ataca de um pretenso Espanhol, na verdade um Portunhol, que soa divertido e muito enrolado, por vezes uma verdadeira algaravia e o hilariante nisso é que nas falas de Brown, pretensamente ditas na língua de Cervantes, os produtores espanhóis não dispensaram o uso das legendas, que aparecem e são providenciais até mesmo para os espectadores brasileiros. Grande Carlito Marron!    
****Coloco aqui um link para o documentário, mas como há coisas de internet que são o tempo todo mutáveis, quem quiser ver o documentário, que o faça logo.