27 abril 2018

Gonzalo Cárcamo, caricaturista e artista plástico: um chileno na Terra do Axé

Por uma dessas inefáveis magias que a Bahia encerra, um dia o cidadão Gonzalo Ivar Cárcamo Luna - que há já algum tempo mudara-se do Chile, seu rincão natal, adotando a cidade de São Paulo como sua moradia - deixou a dita terra dos bandeirantes para vir habitar essa afro-terra de Vadinho e Dona Flor. Por aqui se encantou com céus, mares, gentes e se regalou com moquecas, bobós, efós, acarajés, abarás, xinxins e os quindins  de iaiá cumé, cumé, cumé. Conheci-o mui casualmente em uma galeria de arte e nos tornamos amigos fraternos. Lado a lado caricaturamos mais da metade do povo soteropolitano. Bem mais que um artista estupendo, Cárcamo é um ser humano exemplar, um cara do bem, extremamente ético e culto. E um amigo leal, bem-humorado, compreensivo e generoso, um artigo cada vez mais raro no catálogo humano. Mas só mesmo São Paulo tem um mercado à altura para um trabalho de excelência como o dele. Era inevitável que ele voltasse a se estabelecer em Sampa, onde hoje tem atelier e estúdio, um sólido mercado garantido para si, desfruta de merecido prestígio e garantiu um justíssimo lugar no panteão dos artistas maiores. Em contrapartida, quando descerra as cortinas da imensa janela de sua luxuosa cobertura no Alto do Morumbi, tudo o que vê é um firmamento plúmbeo do qual despencam gélidas toneladas de garoa. Ao passo que eu, quando abro a tosca janela do meu puxadinho na Baixa do Jebe-Jebe, vejo descerrarem-se céus e mares translúcidos e a sublime beleza negra de moças do Ilê Ayê em seu rebolado sensual rumo ao Pelô, enquanto traço um autêntico e celestial bobó de camarão feito por descendentes de núbias mucamas, coisa que não é pro bico de quem mora nessa megalópole chamada São Paulo, colonizada por gentes de culturas outras, itálicos, hispânicos, nipônicos, lusos, sinos, teutos. Bem feito para ele!
Clique aqui para ver os trabalhos de Carcamo: http://gcarcamo.blogspot.com/

14 abril 2018

Ademar Gomes, jornalista e escritor: um Machado de Assis com muita pimenta

 Ser amigo de Ademar Gomes nem sempre era tarefa fácil. Suas alternâncias de humor, suas explosões de indignação e de raiva, seus esgares na face exangue, seus olhos faiscantes surgindo por trás da fumaça de seus puros requeriam paciência digna de monge budista. Em se tratando de inter-relações pessoais Ademar não era exatamente uma grata unanimidade. Professor Bandeira - seu apelido e alter ego - tinha curtíssimo pavio e não primava pelo uso de eufemismos e antífrases quando queria dizer aos outros o que deles pensava. Assim sendo, angariou ao longo da vida um considerável número de desafetos que, à socapa, apodavam-no picareta. Nada mais injusto. Bandeira era um bravo batalhador que sobrevivia com seus escritos. Dos anúncios de seu jornal, o JC, e dos seus livros, ganhava lícita e dignamente o croissant de cada dia e jamais se envolvia em cambalachos, maracutaias, fraudes ou falcatruas que pudessem prejudicar quem quer que fosse. Sua história pessoal daria um rico roteiro cinematográfico. Sendo de baixa extração, tornou-se - qual um Machado de Assis redivivo - um homem de invejável cultura. Boa parte a devia ao escritor Ariovaldo Matos, com quem muito conviveu, e ao respeitado cronista Sylvio "Resistir Quem Há-De" Lamenha, professor e intelectual, uma espécie de mentor de Ademar. Professor Bandeira - ou ainda Zé do Grilo, outro alter ego seu - tinha verve rara e quando as coisas para ele navegavam em mar de almirante, era agradavelmente gárrulo e todos em volta ficavam embevecidos com sua rara dialética e sua retórica entremeada de inspiradas boutades. Conhecia em detalhes a vida, a trajetória de cada político, de cada empresário, de cada figura desta terra. Sabia-lhes o lícito e o ilícito, os golpes perpetrados, as insídias, os adultérios, as tramoias. Um dia meu filho se aproxima de mim com um jornal aberto na página dos obituários, nela o nome do amigo tão fraterno. Abraçamo-nos em pranto convulso. Nutríamos por Ademar um imenso afeto que descobri maior quando ele se foi desta vida. Hoje, sua ausência traz uma constante e indefinível sensação de vazio, uma dor que lancina, análoga a que sinto pela perda precoce de irmãos meus em Sampa. E fica a certeza de que quando alguém que amamos se vai, uma parte da gente segue junto e nunca mais somos completos. Poderia dizer a este tão amado amigo "descanse em paz, Ademar". Mas esta não é a frase adequada para se usar com Professor Bandeira que, agorinha mesmo, Romeo Y Julieta no bico, inexoravelmente está promovendo formidáveis esporros entre as nuvens do céu, questionando São Pedro, enquadrando anjos, arcanjos e querubins, exigindo falar com o Criador em pessoa para reclamar da música, do serviço celestial, do desafinado coral de anjinhos. E o Paraíso nunca mais será o mesmo. Bote pra F, querido irmão!
(23/11/10)