21 março 2021

João Ubaldo Ribeiro já previra o golpe de 2016 e quem haveria de mandar em uma ''democracia de conluios e negócios escusos".

O texto abaixo é do escritor, jornalista, roteirista, cronista e Mestre em Ciência Política, João Ubaldo Ribeiro, ganhador do Prêmio Camões, galardão máximo para escritores da Língua Portuguesa, um brasileiro extremamente inteligente, de elevada consciência política e social que disse isso tudo aí antes, bem antes de acontecer o nefando golpe jurídico-político-midiático que assola o Brasil, que findou por  colocar no poder uma escória. JUR não estava especulando. Disse o que disse por conhecer de sobejo o Brasil e suas gentes. 
João Ubaldo Ribeiro:
"Desde que me entendo, ouço falar em reformas e as únicas que lembro ter visto efetivamente realizadas são as ortográficas. Talvez eu esteja sendo injusto e tenha presenciado a realização e implantação de alguma reforma não ortográfica. Mas não aquelas que antigamente eram chamadas de “reformas de base” e consideradas essenciais para o desenvolvimento ou até a sobrevivência do País. Reforma agrária, reforma tributária, reforma judicial, reforma administrativa, reforma educacional e por aí se desfiam as benditas reformas, um longuíssimo rosário, impossível de recitar de cor. Ao mencionar-se sua necessidade ou urgência, todos assentem com ares graves – sim, sim, naturalmente, as reformas.
Contudo, passar da anuência à ação é aparentemente impossível. Reforma é uma coisa na qual se fala, mas não se faz. É excelente para comícios e entrevistas, mas não para agir. De vez em quando, um governante diz que fez uma reforma. Se não me engano, o ex-presidente Lula anunciou que fez uma ou duas reformas. Não lembro quais e provavelmente nem ele, são coisas do passado e ninguém viu reforma nenhuma mesmo.
Tenho uma teoria simples a respeito desse assunto. Todas as reformas, de todos os tipos, iriam prejudicar os que ganham com a manutenção do que está aí. Como o País, de cabo a rabo, em todos os níveis, em todas as classes e categorias, é essencialmente corrupto, a corrupção não deixa. Não existe setor da administração pública, novamente em todos os níveis e dimensões, que não seja território de uma ou diversas máfias, algumas das quais institucionalizadas e quase todas alimentadas por uma burocracia pervertida e feita para ensejar propinas, vender influência e fazer proliferar os despachantes e seus equivalentes mais graduados, os chamados consultores – entre estes últimos constando o hoje injustamente esquecido filho de d. Erenice. ( N.R - JUR refere-se a Israel Guerra, filho da ex-Ministra-Chefe da Casa Civil
). Diante da realidade de que há quadrilhas em ação em todos os poderes, tanto de fora para dentro quanto de dentro para fora, não se vai acreditar que os beneficiários de determinado estado de coisas abdicarão de suas vantagens pelos belos olhos de quem quer que seja. Ouso mesmo dizer que, em muitas das áreas mafiosas, quem for fundo demais na investigação e na reforma corre o risco de morrer. São muitas as histórias de assassinatos realizados a mando de algum esquema de corrupção, pelo Brasil afora. Não escapa área nenhuma, a começar, simbolicamente, pelas próprias polícias.
E não escapa, naturalmente, o Congresso Nacional,
onde, segundo as más línguas (observem meu uso copioso do adjetivo “alegado”, ou quem vai preso sou eu) há alegados ladrões, alegados estelionatários, alegados salafrários e outros alegados, em tamanha fartura que desafia a contagem. Agora o Congresso está entregue à tarefa de realizar a reforma política, todo mundo fingindo que acredita que algo que prejudique os interesses imediatos dos congressistas será aprovado. E que o nosso sistema eleitoral está sendo aperfeiçoado.
Aperfeiçoado para eles. O que eles pretendem chega a parecer brincadeira, mas, infelizmente, não é. Querem, como se sabe, instituir o que já chamam afetuosamente de “listão”. O eleitor não votará mais em um candidato, mas na lista elaborada pelo partido, na ordem estabelecida pelo partido. Atualmente, com a lista aberta, pelo menos o eleitor escolhe uma pessoa e essa pessoa, se bem votada, fatalmente se elege. Mas não vai haver mais esse direito. De agora em diante, com a lista fechada, o eleitor escolhe o partido com que se identifica e lhe entrega a escolha dos nomes que serão eleitos.
Só pode ser deboche. Que significa um partido político no Brasil, senão a conglomeração temporária de interesses que raramente são os da nação, mas de grupos, categorias ou indivíduos? Até os programas partidários não passam de florilégios de frases vagas e altissonantes, tais como o combate à desigualdade e a injustiça social, os projetos de inclusão, o desenvolvimento sustentável, a preservação do meio ambiente e outras generalidades, quem ouve um, ouve outro e, se o nome do partido fosse apagado, não haveria quem o distinguisse. Apareceu até um partido que se declara não ser de esquerda, nem de direita, nem de centro. Talvez seja o mais honesto deles todos, por mostrar que reconhece a realidade política brasileira. Aqui nenhum partido quer dizer nada mesmo e podiam usar todos a mesma sigla: PPPPP, Partido Pela Predação do Patrimônio Público, porque tudo o que seus membros aqui almejam é abocanhar a parte deles.
Agora vêm com essa novidade da lista fechada. Se já não nos é permitido dar palpite no uso do nosso dinheiro, daqui a pouco nos tirarão o direito de escolher nossos governantes. Ou seja, seremos mandados pelas organizações oligárquicas e caciquistas dos partidos. Seremos uma “democracia” governada por conluios e manobras escusas. Ou por 171, como queiram."

( Trechos de artigo de João Ubaldo Ribeiro, ''Se reformarem é para piorar.''
 (01 novembro 2011 )
http://academia.org.br/artigos/se-reformarem-e-para-piorar

10 março 2021

Flavio Colin, desenhista de quadrinhos, um cara muito especial.

Um dia um anjo torto me colocou o dedo na testa e me disse: "Vai Setúbal, ser desenhista de quadrinhos na vida." Instantâneamente empolgado, pensei: "Caraca!, estou acima dos outros. Um anjo, um emissário do Onipotente, me tocou a testa e me fez um cara especial". Sim, fizera mesmo, e eu - ainda um meninote e neófito - a meio um desmedido deslumbramento, lesto e presto saí por aí empolgadíssimo, rabiscando tudo o que via a minha frente, feliz por poder fazer coisas que outros não sabiam fazer. E estas gentes vinham e me circundavam com olhos embevecidos a cada ainda incipiente traço que eu traçava para maior gáudio do meu já mui inflado ego. Até que um dia me caíram às mãos revistas com os desenhos de Flavio Colin. Meus olhos saltaram em órbita, meus joelhos tremeram, meu coração disparou um retumbante som de percussão. Que traço maravilhoso, que desenho personalíssimo, seguro! Quanta criatividade ao desenhar personagens apaixonantes, indumentárias, animais, natureza, cenários! Seus traços transmitiam aos meus olhos de leitor o clima requerido por cada cena, drama, tensão, terror, humor, mistério, expectativa, medo, pavor, erotismo, alegrias. Um sentimento difícil de se traduzir em palavras tomava conta de mim a cada nova conferida naquelas maravilhas em preto e branco, sensação que se mostrou perene ao longo de minha vida. Desde seus primeiros trabalhos Colin desenhava quadrinhos como um experimentado Mestre, autêntico, legítimo, anos luz à frente de tantos bons profissionais.
Atônito, um tanto frustrado, meio jururu, voltei ao tal anjo e lhe disse: "Pô, bró...fiquei feliz por saber desenhar, mas eu queria mesmo é que meus desenhos fossem assim, tão maravilhosos como os deste cara". Inabalável, com boa dose de enfado, olhar blasé e ares de este-cara-já-tá-querendo-demais, foi em um tom bem pouco angelical que o anjo redarguiu: "Nada posso fazer, meu caro. Mesmo entre os especiais há aqueles que são, digamos... bem mais especiais que os outros. E meu chefe vive dizendo, amizade, que Flavio Colin, é um cara muito, muito, muuuuito especial!"
(120414)