Bete olvidou o beijo que da minha nebulosa memória jamais se apagou e em algum cantinho ermo e penumbroso de suas lembranças empilhou, desinteressada, as palavras de carinho que lhe disse e o beijo que trocamos frente ao Castro Alves que até hoje em minha mente trago claro como o mais claro dia de sol. Bete tinha uma moto e com ela tanto cruzou ruas, alamedas e avenidas que findou por descobrir uma recôndita vereda que conduzia ao beco sem saída do meu coração. O capacete que usava escondia dos outros seu rosto mas não ocultava de mim seu sorriso (ai!) e seus lindos olhos ciganos(ui!). Toda mulher é uma multidão. Ser múltiplo pela própria natureza, quem lhe adivinha os inescrutáveis pensamentos? Quem decifra seu sorriso após a lágrima sincera que derrama? A insondável origem de sua força surgindo de sua aparente fragilidade para vencer a mais forte das humanas tormentas, quem pode explicar? No amor, entre gestos de recato, volúpia e devassidão. Na noite tépida, adormecida, a mão sobre o púbis, quem há de antecipar os sonhos que há de sonhar entre lençóis de branco linho? Como prever o que dirá e fará cada uma das mulheres dentro de toda mulher? Não adivinho as palavras e gestos de Bete, pura recusa aos meus apelos. E vejo atônito que essa moça, de um dos oito casacos que usa para se proteger do frio intenso de Cachoeira, puxa a mais afiada das cimitarras e trespassa num golpe seguro minha alma geminiana, romântica como um perro gitano uivando ao plenilúnio. Mesmo inerme e estando ferido, dela ainda quero voltar a sentir o gosto do beijo que numa noite de estio embevecido provei e que trago em meu peito guardado a sete chaves, oito trancas e nove pega-ladrões. Movo minha boca ao encontro da sua mas ela volve o rosto negando-se. Puxo-a pela cintura e colo seu corpo ao meu mas é nítido que seus pensamentos escapolem, descem e sobem as ladeiras de Cachoeira e já dobram a esquina acompanhando, entre cânticos, turíbulos, escapulários, terços e andores a procissão da Irmandade da Boa Morte. E eu, o ouvido surdo de sons, a boca muda de palavras, os braços vazios de gestos, quedo-me só 9no meio da praça enlaçado a um corpo deserto de alma. Bete sorriso (ai!). Bete de olhos ciganos(ui!). Bete tantas mulheres, uma multidão. Em disparada, pisoteando, aniquilando meu quase inocente coração.