05 outubro 2019

H. Lima, o Lima Limão, um raro artista da Bahia.

Horiosvaldo. Este é o nome que ele recebera em pia batismal. Horiosvaldo, sim senhor. Assim, com H e tudo. Horiosvaldo Moura Lima, a quem todos chamavam apenas de Lima. Às vezes, jocosamente, de Lima Limão. Artista plástico, gravador de rara habilidade no manejo da goiva que em sua mão penetrava a madeira sem a ela causar dores. Dali iam surgindo casarios com amplas janelas, céus, mares que ele ao final pintava com sua sensibilidade de artista raro. Cursara a Faculdade de Belas Artes sem no entanto concluir o curso, seja por dificuldades econômicas ou por entender que o chamado ensino superior não lhe traria o que a prática generosamente lhe dava. Mal eu chegara de Sampa para morar na Bahia, conheci Lima e ele de pronto me adotou como irmão mais novo. Me acolheu em sua casa, integrou-me em sua família como se um irmão de fato eu fosse. Sua estratégia de vida consistia em pegar os poucos caraminguás que tinha no bolso, conseguir uns dois compensados pequenos, umas poucas bisnagas de tinta acrílica. Assim munido, criava duas belas obras de arte e com elas sob os braços lá ia ele - e eu, fazendo as vezes de fiel escudeiro - pelos edifícios do Comércio visitando profissionais liberais e pequenos empresários aos quais ele mostrava suas criações até que alguém as adquirisse. Então, cheque no bolso, deixávamos a Cidade Baixa pelo Plano Inclinado, atravessávamos o Terreiro de Jesus e íamos direto ao brega, no Pelô. Com as melhores e as mais puras intenções, frise-se. Enquanto descíamos as ladeiras do meretrício, onde a vida imitava os livros de Jorge Amado, das janelas vinham motejos de femininas vozes dirigidos ao meu amigo de corpo franzino: "Macarrão 38!", "Lima Limão!". A elas ele devolvia, sorrindo: "Lindinalva, magrela!", "Marizete, roçona!". E seguíamos sem nos deter, pois no brega não estávamos para desfrutar das gentis senhoritas que ali viviam de mercar seus corpos, mas para trocar o tal cheque recebido com algum coligado, dono de bar, que mediante um ágio, colocava dinheiro vivo na mão de Lima que já sabia o que fazer com ele. Parte seria destinada à manutenção do lar, entregue à Maria, sua fiel companheira de todas as horas, mãe de seus três rebentos, que assim compraria munição de boca para os próximos dias. Esta era a preocupação mor de meu amigo que, enquanto vivo foi, portou-se como um pai exemplarmente zeloso que amava com  extremado carinho sua prole e dela cuidava sem incúrias. Uma segunda parte da verba auferida seria para compra de novo lote de material - madeira e tinta - para fazer os próximos quadros, o que garantia este ciclo. E uma terceira parte era destinada a pagar uma série de velhas contas em pequenos botecos, visgueiras e cacetes-armados onde Lima costumava beber sua caninha Saborosa e pendurar as contas. Nem sempre era possível pagar a todos, era preciso fazer uma seleção criteriosa. E muitos ficavam de fora da partilha. Estes ele evitava mudando de calçada e de ruas. E me dizia, enquanto caminhávamos: "Seu Paulo, vamos desviar por aqui. Ali naquela rua tem um cara que está me devendo uma boa grana. E eu não quero receber de jeito nenhum!". Saudade. Muita saudade, Lima Limão.
(05/11/14)