Carla Jimenez,
THE INTERCEPT
Qualquer assunto a ser tratado por esta coluna tornou-se secundário diante das fotografias aterrorizantes que o mundo viu de bebês, crianças e idosos Yanomami em pele e osso, divulgadas na semana passada. Não temos como apagar da retina as imagens de seres humanos desnutridos, cadavéricos, desmoralizados por uma política de tortura, que só havíamos visto em cenas de indigência extrema em países paupérrimos da África, em filmes sobre o holocausto judeu, ou durante seca no Nordeste no século 20.
O planeta inteiro viu nitidamente como o Brasil comete o genocídio de sua comunidade indígena. O Instituto Brasil Israel comparou o genocídio dos Yanomami com os judeus presos na Alemanha nazista. “Sim, estamos fazendo comparações com campos de concentração. Devemos usar o Holocausto como um exemplo que jamais deve ser seguido. Infelizmente, parece que parte do mundo não aprendeu o verdadeiro significado de 'nunca mais'”, escreveu o IBI.
Nossa bolha bem-informada sabia o que estava acontecendo há muito tempo. Os leitores do Intercept leram em agosto que o governo Bolsonaro havia ignorado 21 pedidos de socorro do povo Yanomami. Jornais como Amazônia Real, O Eco, Repórter Brasil, De Olho nos Ruralistas, Agência Pública e, mais recentemente, Sumaúma, vinham denunciando exaustivamente esse quadro chocante, que inclui os estupros praticados por garimpeiros. Mas as palavras já não são suficientes para alcançar a atenção das pessoas na assustadora era da informação. Nos tempos de multiverso, era preciso enxergar a realidade a cores, com todas as suas texturas e rostos cadavéricos, para que muita gente finalmente compreendesse o que é a tortura e o cinismo do estado brasileiro.
Especialmente, quando há um mecanismo milionário de distribuição de mentiras em redes sociais, amplificado por parlamentares de má-fé, para apagar a luta dos indígenas e favorecer ruralistas em troca de influência e financiamento de campanhas eleitorais. Vários desses políticos estarão assumindo seus mandatos no Congresso na semana que vem, e é inadmissível ignorar suas digitais neste morticínio: nós sabemos onde vocês estavam no governo passado. Como o senador Hamilton Mourão poderá negar sua conivência, tendo ocupado a presidência do Conselho Nacional da Amazônia Legal por três anos? O órgão foi formado por 19 militares e ninguém da Funai ou do Ibama.
A ditadura militar foi pródiga em dizimar indígenas em nome do "progresso" — o bolsonarismo foi só sua extensão. Há relatos de militares que enriqueceram no passado com o desenvolvimento econômico a qualquer custo, comprando terras na Amazônia a preço de banana. Há milhares de indígenas e quilombolas mortos silenciosamente pelos governos militares que não são contabilizados pela história oficial e, também por isso, o imaginário da "ditabranda" segue firme.
O povo Wajãpi, no Amapá, quase desapareceu em sua totalidade nos anos 1970, contaminado pelo sarampo, que chegou com madeireiros e garimpeiros. Eram bebês, idosos e crianças morrendo a esmo diariamente. Ouvi esse relato do cacique Kasiripinã Wajãpi em 2017, quando estive em sua aldeia. Emocionado, ele lembrava desse passado triste enquanto denunciava o plano do então governo Michel Temer de abrir a Reserva Nacional de Cobre e Associados à exploração de mineradores, atingindo diretamente as terras demarcadas de seu povo.
Os Wajãpi venceram aquela batalha. Mas o cacique não resistiu aos anos Bolsonaro e morreu de covid-19 em janeiro do ano passado.
Somos completamente ignorantes sobre nossos ancestrais. Aprendi nos meus tempos de escola (particular) a cantar mais hinos militares, como a Canção do Expedicionário, do que cantigas oriundas da cultura indígena. Foi essa formação que forjou o imaginário brasileiro que legitima os militares como heróis e apaga o sofrimento imposto aos indígenas.
Gostamos de exibir e destacar a nossa ascendência italiana, portuguesa, espanhola, e escondemos nossas raízes indígenas, ciganas, negras. Qual a diferença entre os brancos que escondem esses antepassados e os negros, como o jornalista Sergio Camargo, o ex-presidente da Fundação Palmares que não reconhecia a história de seus ancestrais?
A memória do morticínio indígena está impregnada não só no Brasil, como nos demais países latino-americanos. Foi a forma violenta como a exploração europeia nos atravessou. Não é uma exclusividade brasileira. A Argentina, o Chile, o Peru e a Bolívia também têm suas divisões de classe, levando os descendentes de colonizadores europeus a se julgarem superiores aos povos originários. Arrisco a dizer que no Brasil é pior, porque a cultura de morte aqui é muito mais aceita do que nos países vizinhos — e o conhecimento indígena está muito mais presente nas escolas e na cultura de países de língua hispânica.
O governo do PT está fazendo sua parte, mas não é totalmente inocente, com seus Programas de Aceleração do Crescimento e planos de hidrelétricas na Amazônia – como a Usina de Belo Monte, que condenou populações à violência urbana e à contaminação dos rios que antes eram sua fonte de alimento. Foram as contrapartidas entregues às bancadas ruralistas e os falsos cristãos evangélicos. Nada, obviamente, comparável à crueldade da era bolsonarista e sua legião de parasitas. Damares Alves e sua hipócrita cruzada mitômana que o diga.
Ainda estamos expurgando esses horrores. Não cabe aqui a politização rasa do assunto. Temos uma grave crise de identidade a encarar, e não podemos fugir. Somos nós os cidadãos de segunda classe, e não eles.