NÃO ADIANTA MAIS discutir os evangélicos nessa eleição. Não é
mais sobre eles que devemos nos debruçar – é sobre a consolidação do
nacionalismo cristão reacionário, que emergiu como ideologia política da
extrema direita global, descolada do fascismo tradicional. É nesse movimento
que o Brasil está.
Também não há erro nas
pesquisas eleitorais. É óbvio que houve um fosso entre o que se projetou e o
que se viu na apuração. Mas elas captaram o momento e, uma vez que apenas a
porcentagem de votos de Jair Bolsonaro divergiu muito do esperado, a chave para
a compreensão dessa diferença está no que permitiu mover a intenção de voto a
seu favor.
É saber o que não foi visto.
Talvez tenha havido menos equívocos nas pesquisas do que erros na leitura e
interpretação do contexto político. Jornalistas, analistas e comentaristas se
apegaram a uma forma possivelmente arcaica de interpretação das sondagens. Se
prenderam a variáveis tradicionais que cruzavam com os dados e pronto. Uma
leitura que, ao que tudo indica, não funciona mais diante de cenários tão
complexos quanto o atual.
Mesmo a categoria
“evangélicos”, hoje tão em voga, custou a ser uma “variável” levada a sério e,
quando passou a ser, suas atitudes e anseios eram resumidos basicamente à
“pauta moral”, à “ausência do estado” e à “influência das lideranças
evangélicas midiáticas”. No máximo, admitia-se: “evangélicos não são um grupo
monolítico”.
Enquanto isso, a extrema
direita no Brasil ascendeu sem ser citada, debatida em rede nacional ou sequer
entrevistada. Sem profundidade – não por incompetência, mas pela limitação
imposta por um tema complexo do qual se sabia pouco ou nada –, os analistas se
ativeram ao trivial. As análises olhavam (e ainda olham) em grande parte para o
agora, para momentos estanques, que não encontram conexão com um processo que
permaneceu em movimento.
A vitória de Bolsonaro em 2018
inseriu o Brasil institucionalmente em uma articulação global de extrema
direita “amenizada”, com foco na família e nos valores cristãos conservadores,
inspirado no nacionalismo cristão dos Estados Unidos como ideologia política. Esse
movimento que voltou a florescer por lá avança no Brasil ainda camuflado de um
conservadorismo “evangélico” ou “católico”, que teria como única preocupação a
moralização da sociedade. Não havia jornalistas e analistas para discernir as
dissimulações da extrema direita e dar nome aos bois.
É como o governo Bolsonaro se
juntou ao círculo de Viktor Orban, primeiro-ministro da Hungria, que se tornou
uma espécie de “guru” e transformou o país no principal referencial de governo
de extrema direita no mundo, ostentando um nacionalismo cristão, autoritário,
mas muito bem dissimulado em sua política de valorização da família, da
identidade nacional e dos “valores ocidentais”.
O ministério conduzido por
Damares Alves foi profundamente influenciado pelo programa de Katalin Novák,
ex-ministra da Família húngara e hoje presidente do país. As relações e
parcerias ideológicas feitas por Damares e Ernesto Araújo não foram monitoradas
o suficiente para darem a devida noção do que estavam construindo no Brasil em
termos de fundamentalismo transnacional.
Quase nada disso recebeu a
devida atenção ou foi alvo de análises abrangentes. Peguemos como exemplo a
participação de Damares na 3ª Cúpula da Demografia de Budapeste, capital da
Hungria, em 2019. Sob a máscara da discussão do “valor da família”, o Brasil se
fez representar numa convenção internacional em que, na prática, se discutia
restrições à imigração e um país de povo “puro”.
Vale-tudo não pode ser ignorado
Esse protagonismo nas relações
internacionais ultraconservadoras não aconteceria sem um ambiente de
acolhimento às ideologias reacionárias no país. A extrema direita estava
navegando desde 2018 a fortes ventos na política brasileira. Em nenhum lugar do
mundo um grupo nesse nível de reacionarismo fascista entraria com tanta
facilidade no Senado em uma única eleição.
O “espírito” foi soprado antes
– e há lavajatismo e antipetismo aqui. Com “espírito”, eu me refiro ao pano de
fundo do contexto no qual chegamos, que quase nunca é evocado por analistas e
comentaristas. A “nova geração” de jovens de direita que surgia e se articulava
ainda durante o primeiro mandato de Lula, reivindicando o neoliberalismo e,
ainda, um ultraliberalismo para a política econômica brasileira foi o movimento
incipiente desta reação.
Obviamente, nada se resumia à
economia, mas à insatisfação de um plano de governo que abria os “espaços
privilegiados” do país para as classes populares. Este ressentimento
esperou, concentrado, até que o escândalo do mensalão e a adesão à operação
Lava Jato por grande parte da classe média brasileira desse nova tração à
hostilidade que se transformou em antipetismo.
O salto de Bolsonaro entre as
pesquisas e o 1º turno não será explicado olhando com desconfiança para os
evangélicos.
Assim, o impeachment da
ex-presidente Dilma Rousseff, com direito a votação de parlamentar homenageando
torturador da ditadura militar, abriu de vez o caminho para a radicalização de
extrema direita, que se considerava contrária à “velha política”. Uma extrema
direita ultraliberal que encontrou uma extrema direita religiosa, dando o caldo
para o movimento que nos colocou no meio do lamaceiro.
Mas grande parte da imprensa –
aquela preocupada com a democracia, claro – preferiu publicar os “insights” de
seus comentaristas do que se aprofundar nas complexidades que envolviam essa
transição, com a nova gramática que a extrema direita e o nacionalismo cristão
traziam.
Assim, “extrema direita”,
“nacionalismo cristão”, “reacionarismo”, “alt-right”, “fundamentalismo
transnacional” e “algoritmos” nunca entraram na análise, com raríssimas
exceções e nunca no mainstream midiático. Restrito a poucos especialistas, esse
mapeamento e sua divulgação e exposição no espaço público faria uma diferença
considerável no diagnóstico do momento atual.
No Brasil, mostrou-se muito
ineficaz e pouco assertivo olhar pesquisas e analisar política sem que esses
novos marcos fossem considerados. Provavelmente, a mobilização de votos e o
convencimento dos eleitores estavam atravessados por eles também. A capacidade
de reação do bolsonarismo para fazer Bolsonaro dar um salto significativo desde
a última pesquisa do Datafolha, que o colocava com 36% no primeiro turno, não
será explicada nem buscando erros nas sondagens, nem olhando com desconfiança
para os evangélicos. A habilidade de mobilização e articulação da extrema
direita (principalmente por criar uma situação de vale-tudo) não pode ser
ignorada.
Os esforços de organizações e
fundações de fortalecimento da democracia que investiram financeiramente em
iniciativas evangélicas progressistas foram louváveis. Mas o que elas podem
fazer sem referencial teórico, formação, mapeamento, cruzamento de dados? Nada.
Bolhas. “Conversar com os evangélicos” não surtirá efeito agora.
Obviamente, o segmento
evangélico é numeroso e relevante. É evidente que ele deve receber atenção e
ser ouvido (e procurado). Mas é um erro ver nesse grupo a parte da sociedade
que deve ser “convencida” de que Bolsonaro representa a extrema direita e está
afundando o país em uma ideologia política reacionária perigosa.
Tem que se conversar com e para a sociedade e desarmar esse arcabouço ideológico, desfazer a captura do sentido da vida pela extrema direita. Enquanto ideologia, o nacionalismo cristão nem de longe está circunscrito aos evangélicos. Não é religião. É política, a pior delas." Esta importantíssima análise é da autoria de Ronilso Pacheco, Teólogo pela PUC-Rio, ativista, pastor auxiliar na Comunidade Batista em São Gonçalo, autor de "Ocupar, Resistir, Subverter" (2016) e "Teologia Negra: O sopro antirracista do Espírito" (2019); mestrando em teologia no Union Theological Seminary (Columbia University) em NY. https://theintercept.com/2022/10/07/conversar-com-os-evangelicos-nao-surtira-efeito-agora/