02 abril 2022

O dia em que o cartunista Valtério Sales saiu do armário e botou pra quebrar.

 Como é de habitude, os dias de estio da Bahia soem ser iluminados, plenos de risos, festas, confraternizações amistosas sob o sol à beira da praia, papos profundos regados à cerveja e roskas de frutas as mais diversas. Antes, bem antes que as águas de malço deem as caras fechando o verão, há uma enorme promessa de vida no meu coração e nos corações das gentes que por aqui habitam. Ou que por aqui aportam, como é o caso deste retumbante e maravilhoso trio de ilustres paraenses, estimados amigos meus que decidiram passar uns dias sob o convidativo sol desta afrocity chamada Soterópolis, que vem a ser a afrocapital da Bahia, e que em dias recentes nos visitaram nestas plagas. Refiro-me a Biratan Porto e J. Bosco, consagrados cartunistas e caricaturistas brilhantes, e a Luiz Fernando Carvalho, estudioso apaixonado do universo cartunístico, sendo ainda uma batelada de coisas mais. Pois estes intimoratos conterrâneos da Fafá de Belém, da Gaby Amaranto e do Pinduca planejaram com antecedência sua viagem e estadia, hospedando-se em um confortável flat em Itapuã. Também de forma antecipada ligaram cientificando a mim e ao cartunista e escultor Valtério Sales, por sermos seus amigos de longa data. No dia e hora da chegada, Valtério – estreando uma nova bengala toda feita em madeira de lei - foi buscá-los, transportando-os para o flat. Não demorou muito e cheguei eu. Reencontrar amigos do peito como Bira, Bosco e Luiz Fernando é sempre uma renovada alegria, sentimento em muito ampliado quando Bira anunciou que nos traziam uma mala cheia de regalos, dentre eles, para o Valtério, uma caixa da famosa bebida paraense que chamam de cachaça de jambu, uma cachaça que cachaça não é, segundo os dicionários, reservando eles esta denominação às bebidas feitas com cana de açúcar. Ocorre que, cachaça ou não cachaça, esta bebida é famosa por ter características exclusivas dela, tais como um barato que dá, seguido de uma dormência nos lábios, língua e céu da boca. Valtério, que já a experimentara em outras oportunidades, arregalou os olhos e chegou a flutuar, tal era sua felicidade. 
Muito embora este meu papo trate sobre gentes e acontecimentos da Bahia e do Pará, vou encaixar aqui um tremendo gauchão, o analista de Bagé, personagem criado por outro Luís Fernando, o escritor filho de Érico Veríssimo. Entre um joelhaço e outro em seus pacientes, o analista afirma, sem admitir réplica, que não existe gaúcho homossexual, o que existe nos pampas são correntes migratórias. Falo isso porque na Bahia não existem larápios, gatunos, ladravazes e rapaces. Mas volta e meia surgem por aqui umas correntes migratórias de maus elementos, oriundos de sei lá quais rincões, para nos turvar os dias mais solares. Pois uma dupla destas entendeu de dar plantão justamente no flat em que estávamos, assaltando eles todos os apartamentos e seus ocupantes. Precisamente ali, onde nos encontrávamos papeando na maior descontração, bebendo umas geladíssimas. J.Bosco, sedento, fora na cozinha pegar mais umas cervejotas na geladeira e viu os dois amigos do alheio armados com duas automáticas. Por sorte os meliantes não o viram, e ele conseguiu nos dar o alarme. Além de cartunistas, somos todos machos que honram as calças e as samba-canções que vestimos e fizemos o que era imperativo fazer, já que este negócio de valentia tem hora e o bom senso nos alerta que em momentos de desvantagem como o que se anunciou, o ato mais corajoso, racional e sensato a ser feito é tratar de se esconder o melhor e o mais rápido possível. Assim, Luiz Fernando, que tem físico de lutador de sumô, pulou, qual um acróbata, dentro de um grande baú que servia de decoração. Eu, Bosco e Bira, nos enfiamos céleres debaixo da cama e Valtério, na falta de um esconderijo melhor, entocou-se no armário. Não demorou e a dupla entrou no quarto e começou a mexer na bagagem dos nossos amigos. E nós - ai de nós! - todos silentes e sem mexer um músculo, nem respirar. Os sujeitos exultavam, colocando em um saco tudo de valor que encontravam, celulares, relógios, laptops, chave do carro, CDs do Pablo dos quais JBosco jamais se separa. De repente, um dos larápios comemorou em voz alta um achado precioso: “Mermão, olha só este tesouro: cachaça de jambu, vinda de Belém do Pará, meu rei!!” 
Dentro do armário, um anjo soprou no ouvido de Valtério uma verdade drástica: se ele não tomasse uma atitude iria ficar sem sua caixa de preciosíssimas cachaças de jambu, que iriam adormecer os beiços do maléfico duo de aves de rapina. Incontinenti, sem pensar nas consequências de seus atos, sem ligar para as armas mortais dos marginais, qual um tigre Valtério saiu do armário de um só salto e brandindo sua bengala de madeira de lei deu certeiras e potentíssimas porretadas nas cucas das ladravazes criaturas, que caíram no chão, estatelados, sem sequer saberem o que os acertou, sem terem noção da chapa da jamanta que passou por cima deles. Com os bandidos totalmente fora de combate, minha coragem aumentou em muito, bem como a do resto da trupe e deixamos nossos esconderijos sem maiores constrangimentos. Na sequência, chegou a justa numa muito escura viatura. Assombrados com o estado em que ficaram os bandidos, os homi os levaram, ainda nocauteados, para a DP. A nenhum de nós Valtério soube explicar direito o que aconteceu. Porém dúvidas não restam: ele agiu movido por um impulso incontrolável ao perceber que ficaria sem seu néctar dos deuses, o jambu engarrafado que tão gentis amigos trouxeram do Pará. Os dias vão passando, passando, e nada da gente esquecer da cena daquele inacreditável massacre que sofreram os indigitados marginais. Na minha memória, na de Bira, Bosco e Luiz Fernando, testemunhas daqueles momentos, o acontecido ficou perenemente registrado, gravado de forma indelével como o dia em que, mostrando uma faceta que até então desconhecíamos em tão cordato amigo, Valtério Sales saiu do armário e entrou para a História.
(120219)