06 junho 2020

Sylvio Lamenha, amado cronista que tanta falta nos faz, em texto do escritor Ademar Gomes.

Prometi postar neste bloguito alguns textos do jornalista e escritor Ademar Gomes falando de gente de sua estima, seus companheiros mais próximos e estimados, grandes e inesquecíveis amigos. Um deles, um dos caras mais cultos que a Bahia já pode desfrutar da honraria de ter como um dos filhos amados, é o maravilhoso Sylvio Lamenha, uma espécie de tutor intelectual de Ademar, que só chamava Sylvio de Tia Dalva, pelo fato de Lamenha ser amigo pessoal da maravilhosa cantora Dalva de Oliveira, sabendo imitar seu belíssimo canto à perfeição. Pelo tom pesaroso identificável no texto de Ademar, nos apercebemos de sua grande tristeza, da dor pungente, advinda da perda de Sylvio que se foi desta vida deixando seus amigos e admiradores em imenso desconsolo, como bem se pode ver nas palavras de Ademar em homenagem ao cronista e amigo querido.
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"E agora, Tia Dalva, quem me socorrerá nas derrapagens semânticas? Quem me libertará das armadilhas da crase, evitando que eu fique à deriva em meus audaciosos mergulhos nos mares da literatura? Quem - sem chute, sem porretismo - me ensinará a história ( e estórias ) da música popular brasileira? Quem, com simplicidade, sem complicações, me fará viajar no mundo da semiótica? Quem, com sua genialidade, para trocar figurinhas sobre passagens dos chamados clássicos do cinema? E agora, Tia Dalva, quem - cheio de remorsos - me acordará de madrugada para um mea culpa patético sobre eventuais grosserias à Bia, sua devotada mãe, a demonstrar a simbiose entre o gênio e a criança? Quem garantirá agora às inúmeras toupeiras que aspiram chegar à universidade a certeza da aprovação no vestibular, com seus infalíveis ensinamentos? Quem, wildeanamente, terá a audácia de agitar o modorrento dia-a-dia da cidade de muros baixos, onde as igrejinhas - embora reconhecendo-lhe o talento - tanto o reprimiram? Quem, après toi, será capaz de desfilar com bengala renascentista, anéis, colares e pulseiras incrustadas de esmeralda em tributo aos olhos verdes de Maureen O'Hara, sua deusa irlandesa? Quem, depois de sua morte, alegrará os almoços dos amigos com suas boutades, suas estórias irreverentes sobre guerras de espada e perfumarias? Quem espargirá cultura sobre a cabeça dos ignorantes, mas sem a chatice dos que se querem excessivamente brilhantes? Quem guiará meus passos nos sebos da vida? Quem me decodificará a linguagem das artes plásticas, poupando-me do constrangimento de confundir primitivismo, impressionismo, cubismo e outros ismos? Quem, com tanto saber, me explicará Diana, Artemis, Júpiter, me libertando da ignorância mitológica? Quem me enfiará na renitente cabeça que mutatis mutandis nada tem a ver com mulato malandro?
Quem evitará que eu confunda vocativo com ablativo ou nominativo com dativo? Quem, com sua cultura, terá coragem e talento para imitar os falsetes da Dalva de Oliveira, tornando gay e festivo os ambientes formais? E agora, Tia Dalva, sem poesia  e sem irisadas opalas gráficas, resistir, quem há-de?"
(281213)