Ser amigo de Ademar Gomes nem sempre era
tarefa fácil. Suas alternâncias de humor, suas explosões de indignação e de
raiva, seus esgares na face exangue, seus olhos faiscantes surgindo por trás da
fumaça de seus puros requeriam paciência digna de monge
budista. Em se tratando de inter-relações pessoais Ademar não era exatamente
uma grata unanimidade. Professor Bandeira - seu apelido e alter ego - tinha
curtíssimo pavio e não primava pelo uso de eufemismos e antífrases quando
queria dizer aos outros o que deles pensava. Assim sendo, angariou ao longo da
vida um considerável número de desafetos que, à socapa, apodavam-no picareta.
Nada mais injusto. Bandeira era um bravo batalhador que sobrevivia com seus
escritos. Dos anúncios de seu jornal, o JC, e dos seus livros, ganhava lícita e
dignamente o croissant de cada dia e jamais se envolvia em
cambalachos, maracutaias, fraudes ou falcatruas que pudessem prejudicar quem
quer que fosse. Sua história pessoal daria um rico roteiro cinematográfico.
Sendo de baixa extração, tornou-se - qual um Machado de Assis redivivo - um
homem de invejável cultura. Boa parte a devia ao escritor Ariovaldo Matos, com
quem muito conviveu, e ao respeitado cronista Sylvio "Resistir Quem
Há-De" Lamenha, professor e intelectual, uma espécie de mentor de Ademar.
Professor Bandeira - ou ainda Zé do Grilo, outro alter ego seu - tinha verve
rara e quando as coisas para ele navegavam em mar de almirante, era
agradavelmente gárrulo e todos em volta ficavam embevecidos com sua rara
dialética e sua retórica entremeada de inspiradas boutades. Conhecia em detalhes a vida, a
trajetória de cada político, de cada empresário, de cada figura desta terra.
Sabia-lhes o lícito e o ilícito, os golpes perpetrados, as insídias, os
adultérios, as tramoias. Um dia meu filho se aproxima de mim com um jornal
aberto na página dos obituários, nela o nome do amigo tão fraterno.
Abraçamo-nos em pranto convulso. Nutríamos por Ademar um imenso afeto que
descobri maior quando ele se foi desta vida. Hoje, sua ausência traz uma
constante e indefinível sensação de vazio, uma dor que lancina, análoga a que
sinto pela perda precoce de irmãos meus em Sampa. E fica a certeza de
que quando alguém que amamos se vai, uma parte da gente segue junto e nunca
mais somos completos. Poderia dizer a este tão amado amigo "descanse em
paz, Ademar". Mas esta não é a frase adequada para se usar com Professor
Bandeira que, agorinha mesmo, Romeo Y Julieta no bico, inexoravelmente está
promovendo formidáveis esporros entre as nuvens do céu, questionando São Pedro,
enquadrando anjos, arcanjos e querubins, exigindo falar com o Criador em pessoa
para reclamar da música, do serviço celestial, do desafinado coral de anjinhos.
E o Paraíso nunca mais será o mesmo. Bote pra F, querido irmão!
(23/11/10)