11 março 2022

Cinema: Jim Jamusch e Mistery Train, um tesouro disponível no YouTube.

Arte e deleite estão sempre muito bem combinados nos filmes de Jim Jarmusch, cineasta norte-americano que, entre outras cositas, optou conscientemente por abrir mão de ganhos milionários dos produtores de filmes de Hollywood, preferindo ser livre em suas criações, seguindo, com as próprias pernas e mente, a trilha do cinema dito independente, desatrelado aos ditames dos bigshots hollywodianos, o que o salvou de ser apenas mais um cineasta fazedor de parte dessas toneladas de  filmes previsíveis que há décadas seguem fórmulas manjadas que lhes garantem substanciais lucros nas bilheterias dos cinemas do mundo. Melhor para o público do chamado cinema de arte, que pode se deliciar vendo Jarmusch imprimir sua criatividade nos seus belos e instigantes filmes. Uma outra coisa, nascida das idiossincrasias de Jim, é que o cara não permite que filmes seus sejam exibidos dublados em país nenhum, exigindo que seja mantido o áudio original de cada um de seus trabalhos fílmicos. Não tenho notícia de outro cineasta e produtor que aja assim, principalmente sendo um ianque. Essa semana, procurando no Youtube algum vídeo mostrando o incrível músico e ator Screamin Jay Hawkins, terminei encontrando um filme no qual ele participa, atuando com brilho, justamente sob a batuta de Jim Jarmusch. Trata-se de Mistery Train, rodado em1989, que se apossa bem a propósito do nome da canção que um dia Elvis Presley gravou, e que integra a bela trilha sonora do filme. Um trem chegando e partindo conduz personagens, colocando-os e retirando-os de cena. Em seus passos pelas ruas de uma Memphis, cidade do Tennessee, urbe famosa por haver sido local de morada do Rei do Rock, esses personagens deparam-se com a realidade de uma cidade que viu ficar para trás seus faustosos dias de glória, em que abrigava grandes astros da música, inclusive The King, Elvis. A câmera de Jim mostra uma Memphis que agora exibe um melancólico aspecto desgastado, muitos prédios em ruínas, já bastante castigada pelo tempo e pelas mudanças nesse mundo, mundo, vasto mundo moderno. Em certa medida, é possível fazer alguma analogia com Anônimo Veneziano, filme italiano de 1970, em que Salerno, seu diretor, faz uso de imagens de uma Veneza decompondo-se, decadente, servindo de paralelo para narrar a história de um amor que se esvai, marcado por um trágico e inevitável destino reservado ao par romântico da trama. Em Mistery train, lançando mão de uma trilha sonora recheada de rocks, baladas e blues, com direito à doce Blue Moon, Ray Parkins, Jerry Lee Lewis e Roy Orbison, Jarmusch nos conduz por quatro histórias que ao princípio parecem separadas, independentes, com cada personagem vivendo seus sonhos, frustrações, angústias e dramas pessoais. Mas Jarmusch é Jarmusch e nos prepara surpresas com sua câmera, ora parada, ora se deslocando lentamente, enfocando bares, lanchonetes e hotéis em tomadas que lembram quadros pintados por Edward Hopper, pintor ianque que em suas telas congela momentos insólitos, em cenas que exibem ambientes plenos de solidão e mistérios. Sempre se valendo de bons parceiros, nesse Mistery Train Jim conta, como em diversas outras películas suas, com a participação de notáveis, tais como Steve Buscemi e John Lurie. Dois atores japoneses estão muito bem como o jovem casal nipônico que vem a Memphis realizar o sonho de suas adolescências, que é vivenciar o mesmo ambiente que seus ídolos musicais dos anos sessenta, como Elvis, viveram boa parte de suas vidas, incluindo aí cenas do lado externo da lendária Graceland, hábitat em que vivia The Pelvis. Voltando a essa lenda do rock, Screamin Jay Hawkins, o músico e ator, com seu vistoso blazer e gravata vermelhos, está impagável como o recepcionista do Arcade Hotel, em que se passa a maioria das ações do filme, atuando ao lado de Cinqué Lee, irmão de Spike Lee. Fiquem sabendo vocês, leitores fiéis, essa jóia cinematográfica é encontrável gratuitamente no Youtube que, entre tantas midiotices postadas por um magote de gente de cérebro, digamos, pouco brilhante, nos presenteia com tesouros como esse e outros filmes de Jim Jarmusch.
(060917)