OS PATRIOTÁRIOS
Por Clotilde Tavares (*)
Quando acontecia uma coisa muito inusitada, muito fora da curva, Mamãe, devota do Padre Cícero, dizia logo: - É o fim dos tempos! Mamãe era milenarista, supersticiosa, profética, trágica, saída diretamente de um romance de Gabriel Garcia Márquez.
Hoje digo a mesma coisa quando ligo a TV, entro no Youtube ou, simplesmente, tento passar pela Avenida Hermes da Fonseca, aqui em Natal, onde está o Batalhão do Exército.
E qual é essa visão do fim dos tempos? Parece filme. Há uma multidão de idosos vivendo uma adolescência tardia, dormindo no sleeping bag e sonhando sonhos alucinógenos, ocupando a avenida, e o fenômeno se repete nas grandes cidades brasileiras.
Lá está essa multidão de pessoas desocupadas, famílias inteiras à toa, vagando como zumbis, sem objetivo, cantando mantras, empunhando o celular, filmando o tempo todo a tudo e a todos, esperando, esperando, esperando o quê? Os que esperam não estão atentos a uma realidade, mas a uma ausência, e isso os desloca para um tempo suspenso, um tempo sem tempo, de onde a vida foge. Um tempo do qual a piedade se esvai.
Vivo presenciando ao vivo, como se fosse um documentário, esse episódio de dissociação cognitiva coletiva ainda em processo. Muito material para teses, dissertações e também inspiração para ficcionistas, como eu. Uma coisa parecida com o episódio de Jim Jones, na Guiana, ou as Borboletas Azuis, em Campina Grande; e mais tantos outros episódios semelhantes.
São pessoas de classe média, que provavelmente tiveram instrução em escola particular, demonstrando níveis baixíssimos de compreensão da realidade e carência de conhecimentos rudimentares de Geografia e História. Elas encontraram o sentido da vida dentro desse sistema de crenças, nessa realidade paralela. O mundo com suas novidades as ameaçava e agora elas podem se unir e reagir contra os fantasmas da ideologia de gênero, do comunismo e do banheiro unissex – sendo que este último existe desde sempre nas nossas casas.
Parece que, a partir de hoje, o movimento começa a esmorecer. Há uma recomendação para que sejam desmontadas as tendas e para que as pessoas retornem para os seus lares. E eu desejo boa sorte aos filhos e outros parentes que convivem na mesma casa, que vão agora ter que aturar esses tresloucados de volta.
Tenho mais coisa a dizer sobre isso, e li um livro do prof. João Cezar de Castro Rocha explicando como isso aconteceu – e não começou agora, é um processo que vem sendo fabricado há tempos. O livro é “Guerra Cultural e Retórica do Ódio”, que recomendo com ênfase. Mas por enquanto, fico por aqui. O tema é pesado.
Feliz mesmo somente a ema, por ver a indesejável vizinhança às voltas com o caminhão de mudança."
(*) Clotilde Tavares é escritora, trabalha com teatro e estuda literatura de cordel.