10 setembro 2020

Elis Regina, insuperável. / Umas minas que eu amo 4

Somos um país musical. Essencialmente, fundamentalmente, visceralmente, extraordinariamente musical. Entre nossos tesouros pátrios, temos cantoras maravilhosas que arrasam ao cantar e interpretar qualquer tipo de música. Que maravilha, que musical deleite é ouvir o canto de Gal Costa, de Rita Lee, de Clara Nunes, de Cássia Eller, de Daúde, de Adriana Calcanhotto, de Marisa Monte, de Clementina de Jesus, de Astrud Gilberto, de Flora Purim, de Bidu Sayão, de Dona Ivone Lara, de Carmen Miranda, de Elba Ramalho, de Marinês, de Nara Leão, de Dalva de Oliveira, de Ângela Maria, de...ah, são tantas e tantas e tantas! Para mim, entre elas, brilha a estrela mais cintilante: Elis Regina. Elis, a Pimentinha. Inesquecível, incomparável e, em diversos aspectos, insuperável. Elis tinha uma voz e uma força interpretativa que supera os limites do que já é muito, muito bom. Tudo quanto ela cantou ou gravou, segue tendo uma força maior e dói saber que se foi dessa vida e não se ouvirá suas possíveis interpretações para canções que amamos, gravadas por outras notáveis cantoras. Ouço uma delas interpretando uma música, gosto do resultado, mas sempre me pego em solilóquio, dizendo que extraordinário seria escutar Elis Regina interpretando aquela canção, de uma forma que só ela saberia interpretar com toda a força que lhe ia na alma de quem nasceu para cantar, com o coração pulsando forte, saindo do peito, extraindo da canção tudo que ela continha em seus mais recônditos dizeres, de um modo que ninguém jamais a igualou, deslizando por sua garganta abençoada, chegando a nós, preciosa e exata, através de sua voz, de sua força interior. Dói muito tal sentimento de perda. Elis tinha um timing que foge ao comum, mergulhava na canção, ia ao seu âmago, dali arrebatava tudo que essa canção tinha para dar em termos de emoção, fosse a mais profunda dor, melancolia, alegria, esperança, amor não correspondido, amor vitorioso, redentor. O músico César Camargo Mariano, que acompanhava Elis, diz que ela não era só uma cantora e grande intérprete - o que não é pouco - que ela ia muito além disso. César a tinha na conta de um músico, em pé de igualdade com os que a acompanhavam e isso gerava uma total empatia e cumplicidade que facilitava as coisas, era fundamental nos ensaios, nas gravações e apresentações. Elis correu o mundo, esteve em várias cidades do planeta e causou admiração por todos os recantos que passou, graças à sua grandeza musical. Mas não quis fincar raízes na Europa ou nos Estados Unidos. Afirmava ser uma cantora genuinamente brasileira, com largos e indissociáveis vínculos com nossa cultura. Aqui se quedou, em ambiente muita vez adverso para ela e  para o Brasil que ela desejava, lutou com seu talento, sua índole e sua bravura pessoal, e seguiu carreira renovando-se a cada dia, agigantando-se, chegando a um patamar em que poucas no mundo da música chegarão. Tinha a sabedoria de adivinhar o formidável, o magistral em compositores ainda neófitos, novatos em que ela vislumbrava talento em potencial, e lançou ao estrelato vários deles em gravações antológicas. Dava às canções uma força que fazia boquiabertos os próprios autores das composições, fossem eles os ainda iniciantes Gilberto Gil, Zé Rodrix, Belchior ou mesmo Aldir Blanc e João Bosco ou, certamente, o Maestro Soberano, Tom Jobim, com quem Elis fez um dia um antológico dueto, interpretando Águas de Março. Elis se foi, e é uma imensurável perda para o mundo da música. Consola-nos, ao menos, o fato de poder ver e ouvir em vídeos postados na internet, sua voz de interpretações que não encontram similares, uma voz maravilhosa, clara, forte e poderosa que encantou não só o Brasil, foi além, bem mais além, e conquistou o mundo.
(070716)