Numa de suas belas composições, Caetano Veloso – sempre um
sábio - asseverou que só se é possível filosofar em alemão. Para grande
parte dos brasileiros parece que só se é permitido cantar e gravar canções se elas
forem feitas em Inglês. Basta ver o repertório apresentado por calouros em
atuais programas das nossas TVs. E olha que isto já foi beeeeem pior, acreditem
vocês. Nos anos setentas, em quase toda sua totalidade, cantores brasileiros
foram sumariamente varridos das paradas de sucesso, programa de rádios, das TVs,
da mídia em geral deste patropi abençoá por Dê e boni por naturê, maquibelê! Só
se tocavam, só se escutavam, só eram divulgadas nas nossas mídias as músicas norte-americanas
e inglesas. E como o ditado versa que quando você não pode com um inimigo, deve
unir-se a ele, houve à época um acontecimento que vale a pena que nos
recordemos sempre, dado o inaudito e o irônico do fato. Um novo contingente de
gringos, nomes nunca dantes consagrados, sequer ouvidos até então, foi invadindo rádios e TVs tupiniquins,
sem esbarrar nas mesmas resistências às canções e aos cantantes brasileiros,
tocando, recebendo enorme consagração popular, integrando trilhas musicais de novelas,
vendendo toneladas de discos, ficando meses em paradas de sucesso. Estes
gringos, a bem da verdade eram "gringos", grafados assim, com aspas, por serem tão norte-americanos
e ingleses quanto você e eu. Em outras words, eram cantantes made
in Brazil que acharam um jeitinho de fazer chegar a hora desta
gente bronzeada mostrar seu valor. Pois é, pois é, "norte-americanos" e
"ingleses" nascidos por aqui mesmo, já que eram cantores e
compositores brasileiros que, para burlar a aparentemente intransponível barreira erguida pelo
aculturamento, passaram a compor músicas no idioma de Bill Shakespeare e a adotar como pseudônimos uma lista de nomes de origem anglo-saxônica para dar
mais credibilidade, lembrando um recurso que cineastas e atores italianos
empregavam, à época, ao produzirem seus contestados spaghetti
westerns. Para completar, as capas de tais discos feitas de forma a parecer
que eram originalmente produzidos no exterior, e assim os nossos criativos “gringos”
iam conseguindo seu lugar under the sun. Ou seja, foi imprescindível essa bendita transgressão para que muitos
artistas brazucas conseguissem fazer sucesso. E que sucesso, que sucesso!
Nomes como Morris Albert, Terry Winter, Mark Davis, Tony Stevens, Steve Maclean
e Michael Sullivan, entre outros, que embalavam as festinhas adolescentes,
adentravam os lares, vendiam pilhas e pilhas de discos, ficavam meses nas
paradas de sucesso. E depois de conseguirem esta façanha, partiram para uma
maior, e começaram a figurar por largos tempos nas paradas de sucesso de
diversos países e a serem gravados e regravados por gringos, estes, sim,
autênticos. Morris Albert, por exemplo, teve sua composição
"Feelings" gravado por cantantes do mundo inteiro, incluindo os lendários Frank Sinatra e Elvis Presley, façanha que muitos grandes compositores ianques não lograram conseguir por mais que se empenhassem neste desiderato. Outros grandes astros e estrelas da
música norte-americana, como a grandiosa Nina Simone, também a gravaram. A lista de celebridades
a gravá-la é vastíssima, incluindo o supracitado Caetano Veloso, a diva Ella Fitzgerald e Barbra Streisand. No filme "Susie e os Baker Boys" a canção extrapola seu lugar na trilha sonora e invade o roteiro pois ela é o pomo da discórdia entre os
personagens da lindinha Michelle Pfeiffer e os brothers Jeff e Beau Bridges. Aliás a canção está em mais de uma centena de filmes, séries e novelas televisivas. Morris vendeu mais de 160 milhões de discos pelo planeta! Uau! Uau de novo! Ontem, ao rever "Entre Tenieblas", de Almodóvar,
percebi que uma das músicas utilizadas era "Dime", grande sucesso na Espanha. Nada mais que uma versão em
língua espanhola para "Feelings", de Morris Albert. Um dia, um juiz da
corte norte-americana afirmou em sentença que ao compor a música, Morris teria
plagiado uma antiga canção de nome "Pour toi", composta em
1956 pelo francês Loulou Gasté, canção essa gravada por Dario Moreno, que fazia
parte da trilha sonora do filme Les
Feux aux podres.
Muita gente que opina concorda que há semelhanças,
notadamente nos acordes iniciais da canção, mas que elas não chegam a se
constituir em um plágio, discordando frontalmente do juiz, cuja sentença foi
amplamente favorável ao compositor francês já que, no entendimento do
maugistrado, Morris deve ser considerado apenas o autor da letra em Inglês, um
absurdo que configura um autêntico assalto jurídico adredemente consumado em um tribunal, e nós, brasileiros, sabemos
sobejamente o que é essa coisa de juízes tendenciosos, abjetamente parciais, que agem ao arrepio da lei atropelando a verdade, a decência, a honestidade e os pricípios mais basilares da Constituição e do Direito, em nada se importando com as consequências calamitosas que suas injustas decisões haverão de impor às vidas de terceiros.
Polêmicas jurídicas à parte, ''Feelings" tornou-se incontestavelmente um dos imortais clássicos mundiais da
canção graças ao talento de Maurício Alberto, nome verdadeiro de Morris, sendo
Maurício um cidadão brasileiro, um paulista que, nesse país tantas vezes tão surrealista, por força das circunstâncias, tornou-se certo dia um antológico e inolvidável cantor e compositor “gringo”.
(12/05/2013)