25 dezembro 2023

Um amor instável sujeito a chuvas e trovoadas que você não ia querer pra sua vida.

Com minha inadvertida aquiescência essa moça adentra um dia meu viver trazendo consigo generosas braçadas de olentes flores que vai depositando em cada cômodo de minha quase misantrópica ânima e vai tornando fúlgida e álacre cada jornada e mais felizes e iluminados meus passos por urbes e orbe.
Inesperadamente, em dessemelhante dia, essa mesmíssima moça, com gestos impacientes e determinados, arrebata de mim seus ramalhetes, suas corbelhas, seus buquês e os leva, certamente para perfumar almas outras. Não se vai com a mesma delicadeza com que veio, antes dá uma aula de como, com marcial determinação, é possível deletar alguém de sua vida afetiva nào permitindo ao outro a possibilidade de esboçar a mínima reação. Sem titubear, toma dos meus pincéis e tintas, rabisca palavras de ordem e beligerantes frases na parede dantes imaculada de meu quarto, rasga em tiras meus lençóis de pura seda, despedaça meus cristais da Bavária, transmuta em cacos toda minha porcelana chinesa, picota em pedacinhos minúsculos minha coleção de Estampas Eucalol, pulveriza meus CDs do Zeca Baleiro, sapateia sobre meu pôster de Lennie Dale e esfrangalha os meus mais amados álbuns de HQs. Estrepitante, bate a porta atrás de si e esgueirando-se pelas esquinas e quebradas deste mundo, mundo, vasto mundo, finda por desaparecer de minha vida de forma cabal, definitivamente.
Definitivamente, eu disse? Diante dos estragos causados pelos seu cataclismo pessoal nada diverso disto se poderia supor. Pois eis que, passado um tempo não tão largo assim, sabe-se lá por quais insondáveis razões, como se nada do que sucedeu houvesse de fato acontecido, essa moça reaparece em cena, enviando-me um inesperado e intrigante e-mail o qual, por mais que eu tente, não logro decifrar o escopo que pretende. Em seguida, não satisfeita, com suas artes ela consegue o número do meu telefone e com uma voz dulcíssima, de timbre suave, me diz um amontoado de coisas que me soam pouco claras, até enigmáticas, das quais inutilmente tento traduzir o sentido e as reais intenções. A meio uma tempestade de emoções, um vendaval de sentimentos conflitantes, intento fugir, mas é inútil já que ela tem a capacidade de antever meus passos, me cercar os caminhos. Até que em um alucinado momento as minhas mãos - que a mim deveriam mostrar respeito e fidelidade - sem esperarem que eu com elas concorde, saltam insidiosas e vão deslizando pelo teclado do meu PC, digitando, escrevendo o que bem entendem, frases e palavras que revelam os meus segredos mais guardados, os desejos mais ocultos, as carências mais inconfessáveis e depois, sem esperar qualquer vênia ou autorização de minha parte, enviam para essa moça. 
Como dessa senhorita jamais adivinho as ações, não posso dizer que fico pasmo quando ela - depois de haver me procurado com tanta insistência - nada comenta sobre tais inconfidências de coisas tâo íntimas que minhas mãos insidiosamente lhe escreveram, queda-se silente, faz a egípcia. E nada responde sobre o que lhe foi escrito, não retruca, não aplaude, não discorda, não concorda, não tripudia, não contesta, não me provoca com um esgar jocoso em sua face enquanto me mostra a língua, não me exibe o dedo da mão erguido no obsceno gesto, não sai em insana disparada pelas ruas, ladeiras, praças, vielas, veredas, alamedas e bulevares emitindo ensandecidos gritos que demonstrem alvoroçada alegria ou estridente raiva. Seu silêncio é um brado eloquente que, diuturno, reverbera em todo meu ser. 
(111114)