31 maio 2016

Minha cara, minha nobre família baiana

Sou brasileiro, de estatura mediana, nascido em Candeias, terra onde farto é o petróleo, e onde vivi, meu caro Mario Prata, até aquela idade em que alentejanos e lisboetas nos explicam que os meninos deixam de serem miúdos para serem putos. E assim eu, quase puto, porém numa boa, deixei estas terras no recôncavo baiano para ir habitar a hinterlândia paulista, mais exatamente a cidade de Pindorama, que calha de ser a terra natal do escritor Raduan Nassar. Tudo porque Seu Setúbal, meu pai, era paulista - igualzinho ao Buarque, pai do Chico - e voltou para o pindoramense torrão que também a ele viu nascer, levando-me na bagagem. E em sendo assim e assim sendo, tenho eu um pé na coccina tantos eram os italianos do lado macarroni e pepperoni da família. Indeléveis lembranças me evocam sempre o estilo mais que agregador dos meus familiares ítalo-paulistas, as álacres reuniões em torno de longas mesas com pastos, antepastos e repastos, suãs, paneladas de sugo, a polenta fumegante, o falar alto e livre, os risos, as gargalhadas chicoteando o ar, a vida sendo celebrada como bem sabem fazer os de sangue latino. Por tudo isso meu lado paulista ainda pulsa forte e eu, trago no coração Pindorama City e minha maravilhosa professora de Português, Sylvia Jorge, que tanto me ajudou a amar os livros e a escrita. E mesmo nunca falando "ôrra, meu", jamais consegui gostar de outro time senão do meu amado, idolatrado, salve, salve S.C.Corinthians Paulista. E este preâmbulo todo uso para falar de uma típica família baiana, também enorme, igualmente festeira, uma família em que me descubro como parte integrante. Depois da minha experiência paulista voltei para a Bahia, arrumei companheira. E sabe como é: banho de mar, cônjuge voa, engole água, se iodifica, depois que boa, que morenaço que ela fica. Resultado: filho. Tornei-me pai de um soteropolitaníssimo galeguim do zóio azu que hoje, homem feito, se apaixona por uma das morenas mais frajolas da Bahia e me contempla com essa nora cheia de morenice. E achando pouco me regala com uma neta sem aviso prévio, logo eu, um quase teen viro de repente um grandpa. Antes que eu consiga dizer alguma coisa, igualmente à socapa me mimoseia com mais um neto e uma netinha igualmente galeguinha de zói azu, essa aí da foto no colo do galego que é seu genitor. E de quebra me presenteia com uma família muitíssimo baiana com matriarcal primazia, cheia de avós, tias, primas, gentes de matizes diversos, de peles que vão do moreno-claro ao negro. E eu, com meu sangue ítalo-hispânico-luso-paulista-baiânico, me vejo feliz compartilhando dos laços desta autêntica família brasileira, genuína família baiana, uma aula de congraçamento étnico-cultural. Família que tem muito mais em comum com o lado italiano que deixei do que podem supor os habituais cultivadores de estereótipos que nos colocam a nós, da parte de cima do mapa, como um povinho exótico deflagrador de risos de motejo. É traço comum a autêntica alegria de viver, a celebração cotidiana da existência, o espírito gregário, o calor humano, o amor entre os integrantes do clã, a solidariedade, o companheirismo, o compartilhar das felicidades e alegrias. Isto tudo seja em festas populares como a de Yemanjá, do Dois de Julho, do Bonfim, de Santa Luzia, onde o sagrado e o profano se entrelaçam, o catolicismo e as afro-religiões se mesclam em uma democracia autêntica que é uma constante do povo baiano e onde o mundo se devia espelhar para bem conviver. E seja ainda nas festas familiares que sabe-se apenas quando começa - e começa pelo menos uns vinte dias antes da efeméride propriamente dita - e que nunca se sabe quando se vai acabar. Talvez quando acabe a comida, que sendo tanta nunca acaba. Agora mesmo na comemoração do batizado e aniversário de Malu, minha dita neta caçula, que para animar ainda mais a coisa coincide com o dia de São Cosme e São Damião - os Ibeji e Erês, santos-meninos na afro-baiana religião - havia panelões cheios de saborosos vatapá, caruru, farofa de dendê, feijão-fradinho, galinha de xinxim e sabe-se lá mais o quê. Antes todo mundo na igreja católica para o devido batizado. Depois todos à casa para mastigar, deglutir, engolir, comer o caruru da forma que sempre o fazem em meio a conversas diversas, risos, gargalhadas, abraços de admirável confraternização, onde a fé e o amor são uma constante, onde não há espaço para tristezas e a vida é reverenciada como uma dádiva que se comemora com júbilo, afeto e uma exuberante e renovável alegria. Que Deus e os orixás sempre nos iluminem a todos e que bisa Elza, encomende logo sua vistosa elegante roupa vermelha já que a Festa de Iansãnta Bárbara não tarda nadinha a chegar.
(Publicado originalmente em 30/09/2016)