14 janeiro 2020

0 Instituto Cultural Brasil-Alemanha, Roland Schaffner, as Artes e os anos de chumbo na Bahia.

Usando de seu glamour e poder de convencimento o cinema norte-americano sempre aculturou populações inteiras mundo afora incutindo nas mentes das pessoas o padrão comportamental e os valores lá deles. Coisas boas nos chegavam pelos celulóides mas  também nos vinham, sutil ou abertamente, ódios raciais, visões estereotipadas e preconceitos contra povos que os financiadores deste cinema made in USA julgavam serem impecilho contra a sanha imperialista dos States. Não é por acaso que ao ouvirmos o nome Alemanha muitas vezes nos venha à mente, qual uma ideia fixa, a cruz quebrada do nefasto nazismo. Como se cada cidadão teuto fosse um execrável nazista em potencial. Bom, atualmente em várias partes do mundo - aqui mesmo neste país tropical - não são poucos os que almejam ver de volta o nazismo com toda sua tirania. Pois sucede que na Bahia muitas e muitas pessoas, as mais bem informadas, têm para com a Alemanha um sentimento de gratidão eterna. Não só por Schopenhauer, Kant, Nietzsche, Beethoven, Franz Beckenbauer e outros craques tedescos, mas devido a um germânico de nome Roland Schaffner que nos anos 70 dirigiu o ICBA, Instituto Cultural Brasil-Alemanha, uma entidade cultural alemã que não se limitou a nos revelar o melhor da admirável cultura da terra de Goethe e de um interminável lote de brilhantes filósofos, literatos e artistas. Foi muito além disso, irmanando-se com as gentes da Bahia em um tempo, página infeliz da nossa história, passagem desbotada na memória de nossas novas gerações em que um magote de equinos engalanados de verde-oliva tomaram o poder e nos desgovernaram por duas tristes décadas. Com seus coturnos pisavam nossos plexos, jugulares e pomos-de-Adão, sufocando-nos e tirando-nos a voz. A meio isto, foi que Schaffner, administrador do ICBA na Bahia, usando de altruísmo, de senso democrático e de muita coragem abriu e deixou abertas as portas do ICBA para abrigar os baianos mais conscientes que queriam escapar do jugo dos imbecis em gandolas, sequiosos de nos impor o que deviámos ver, ler, falar e até pensar. Seus braços truculentos não alcançavam a entidade oficial alemã, seus coturnos sujos de sangue não podiam ali pisar. Invadir o ICBA seria invadir a própria Alemanha. Então ali, naquele autêntico oásis democrático, podíamos ver exposições e também expor sem as amarras da censura em voga no país. Podíamos desenhar, pintar, ver peças teatrais, atuar nelas, ler. E o fazíamos. Líamos, conversávamos, sonhávamos, ríamos, vivíamos. Os ares libertários do ICBA eram os que queríamos respirar nas ágoras de nossa urbe. Da quartelada nefasta dos anos de chumbo nos ficou um país de visíveis castas onde a desigualdade é gritante. Uns poucos nadam em dinheiro e vivem nababescamente e para eles o paraíso é aqui enquanto um contingente de sofredores têm que lutar arduamente fazendo das tripas o coração para conseguir sobreviver. Há um número assustador de gentes que transitam na maior indigência, mostrando a quem queira ver que o país que nos legaram os ditadores é uma fábrica de desassistidos, de desqualificados, de marginalizados sem acesso às escolas, incapacitados para adentrar o mercado de trabalho e poder contribuir para o país. Entre estes alijados, milhões de famílias de onde nascerá aquele guri franzino de sete, oito anos que dentro de poucos dias, com a mente entorpecida pela cola ou pelo crack, meterá uma bala no meio dos cornos do transeunte que retorna exausto de sua faina com uns poucos trocados no bolso. E rezemos, rezemos muito para que este transeunte não seja um de nós. 
E que dizer do panorama nada auspicioso do Brasil atual que não se mostra nada auspicioso? Que é desalentador? Que ceifa nossos sonhos e esperanças? Não. Temos tudo para sermos desesperançados mas não somos. Gente como Roland Schaffner nos mostra que há um modo correto e mais justo e digno de se agir com os semelhantes. Que ética, cônsciência política e social, coragem e altivez podem ser mais que meros vocábulos nas páginas do Aurélio. Que democracia não deve significar a opressão de muitos em benefício de uns poucos. Que para as trevas sufocantes que nos querem impingir a todo instante e de todas as formas, devemos nos unir e, como Goethe, clamar em altos brados: "Luz! Luz! Deixem entrar a luz!"
201009