10 agosto 2019

Deus e o dom do caricaturista



Parte do meu ofício consiste em fazer caricaturas ao vivo de simpáticas gentes as quais nunca vi mais obesas ou mais esquálidas. As pessoas geralmente adoram participar de eventos que contem com caricaturistas. E ao me verem empunhar o lápis e da virginal brancura do papel fazer surgir a figura de alguém que posa, deixam escapar aquilo que certamente todos os caricaturistas ouvem também: "É um dom!" Como se um querubim a serviço do Criador - ou Ele próprio - tivesse tocado a testa de cada um de nós e nos legado o tal "dom" que nos diferencia dos demais mortais. Longe estão de imaginar que faço - e certamente a maior parte dos caricaturistas o faz - um extenuante e repetitivo esforço para tentar estabelecer uma relativa intimidade com a arte de bem desenhar. Cotidianamente gasto resmas de papel rabiscando, esboçando, bosquejando, debuxando, hachurando, traçando, fazendo, refazendo, corrigindo. Chega a ser algo obsedante. Comecei a fazer caricaturas ao vivo nos anos 80, empurrado por Gonzalo Cárcamo, um chileno com cara de abastado sheik árabe que morou nesta afroterra. Com ele aprendi também o método profícuo e agradável de unir intenso treinamento artístico com o lazer. Munidos de prancheta e papel lá íamos nós para as praias, locais onde encontrávamos à disposição um batalhão de modelos, muitos inertes deixando-se tostar pelo sol. Banhistas, vendedores, adultos, crianças, anciões, núbios, sinos, arianos...uma festa. Aí, discretamente, enquanto se bebia umas cervejinhas e se comia uns caranguejos e lambretas, íamos produzindo estudos e mais estudos da figura humana ao vivo. Até hoje, já sem a companhia de Cárcamo que agora mora em Ilhabela, SP, sigo o método com empenho. Isto, via de regra, resulta em uma natural evolução do desenho e uma maior segurança no traço. Em sua quase totalidade as pessoas soem ignorar todo este esforço e esta dedicação ou até mesmo optam por não acreditar neles, preferindo atribuir tudo ao que chamam de "dom ", o que nos faz sermos vistos com imerecida aura divina. Já não tento demover ninguém deste equívoco, ajeito a indevida auréola sobre minha cuca, pego minha velha pranchetinha, meu prosaico lápis e vou à luta.
Ilustro esta postagem com alguns dos desenhos para estudos que fiz na praia de Jaguaribe, próximo à Itapuã. 
(021113)